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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

...


O pintor morreu

envolto em rosas de maio,

olhando os meninos do Bairro Negro,

cantando os cravos rubros

de um abril florido.

 



Em Grândola poeta-libertador,

dum povo adormecido,

na longa noite de 33;

em abril soldado em flor

que desabrochou a 24,

numa manhã ingente e fresca

florida em liberdade.

 



Na noite, cantor-maldito

de vampiros e eunucos

cuja voz rompeu os tímpanos

e absurdos assombros:

Peniche, Caxias, Tarrafal.

 



Em Coimbra, amigo do vento

levado do Choupal à Lapa

nas brisas ternas dos sonhos

até aos filhos da madrugada.

 



Em Portugal poeta-músico

cujo machado não corta

a enraizada lembrança

gravada a palavras-fogo

no peito da nossa memória.

 



E se alguém se enganou

com seu olhar modesto

verá correr as águas claras

dos mananciais da música

que guardam perenemente

a timbrada voz universal

de abril-liberdade!

 

 



J M (23.02.1987)

Impressões

“Oiço o Nocturno nº 20, de Chopin e recordo-te, Cristina, na tua mágica aparição: tocavas Chopin esforçando-te por chegar aos pedais do piano, mas isso não perturbava a tua fantástica personagem. “Toca, Cristina; Cristina, toca”. Assim se resume foneticamente a tua aparição em Aparição. E vemos-te na tua ingenuidade de 7 anos, madura na tua interpretação, presságio do teu destino trágico. E o simbolismo do teu nome: a sua relação com Cristo. Daí o Nocturno. (E de ver assim presente a uma inocência o mundo do prodígio e da grandeza, de ver que uma criança era bastante para erguer o mundo nas mãos. cap. III) E cais tragicamente numa curva da estrada, regressando do carnaval no Redondo. Porquê? Para expiar os pecados dos outros? Para seres uma revelação do eu inocente e pleno na tua perfeição da música? Porque afinal a música era a tua motivação para existires. Por isso continuavas a tocar depois de morta nas dobras do lençol. E assim cumpriste a tua missão: apareceste, tocaste a tua música e deslumbraste!

E depois surges tu, Sofia! Irmã na vida e na música. Mas, Sofia, tu não tocavas! Pois não, cantavas: tinhas uma voz de contralto deslumbrante (Porque o canto não era nela senão o anúncio de que estava viva, de que estava presente na terra. cap. III) e cantavas maravilhosamente bem. Eras a sabedoria rebelde. Eras a demonstração de que o eu se assumia em plenitude. Eras o milagre da vida exposto perante o cantar da Beira Baixa, nascido da terra, do fundo dos tempos, de uma memória de origens. (Era um cantar da Beira Baixa, escuro, antiquíssimo ou com um sabor a isso, ali, na grande noite lunar. cap. XXIII) E assim prenuncias a tua trágica morte, necessária para explicar a grandeza e o milagre da vida.
Por fim, a completar o trio da perfeição feminina, discretamente, apareces tu, Ana. Onde está a tua música? A tua harmonia está na harmonia das palavras. Tu pensas, Ana! Tu tens a ousadia de enfrentar o profeta e mostrar que a mensagem pode ser lida noutro sentido. Mas primeiro fazes o caminho da busca, procuras a resposta nas palavras evangélicas de Alberto! E descobres a fragilidade das palavras que o Carolino conta na sua experiência de as mastigar. Afinal, as palavras podem harmonizar-se desde que a harmonia venha do interior. Daí teres, Ana, a irregularidade de um dente: és humana, não fora essa irregularidade, serias perfeita. Tu descobres, na grandeza da tua irmã Cristina, na estranha cumplicidade, a maravilhosa realização da vida. E és, assim, a síntese da feminilidade, a realização do milagre da vida, não no sentido daquilo que o Alberto pregava, mas na realização de uma missão que assumiste como tua: ser mãe!”

 

José Manuel Monteiro

Lua cheia!

A Lua sorri distante, cheia,

 

e toca-me suavemente

o rosto deixando na mente

a beleza em grata ideia

 

Ri de forma bela e triste

sonho misto de realidade

o mar de prata que existe

embaciando a claridade

 

Ausência e aproximação

luta ingrata e sedutora

prevenindo o coração

contra fera amadora?

 

E a lua cheia sorri distante

tocou-me profundamente

e permanecem na mente

memórias de tempo amante.

 

J M

“O CANTOR”


As palavras faltaram



nos lábios emudecidos



da liberdade encarnada



numa guitarra plangente.

 



E por sobre notas secas



as cordas vibraram gritos



de revolta e libertação



de anseios reprimidos.

 



Mas nada pode calar



o grito intempestivo



da justiça agrilhoada



nas prisões mais hediondas.

 



Por isso um dia houve



em que as esperanças



tanto tempo incontidas



estalaram em alegria.

 



J M 23.02.1987

...

A tarde alarga-se vertiginosa

sob as sombras esparsas

das árvores; amorosa

a noite beijava

a fria nuvem

que descansada

escorregava

pelas horas do entardecer.

 

O beijo era a saudade

de repente

a crescer, a crescer.

 

J M

Promessas


 



Caminho na luz débil do entardecer

ao longo da praia do teu corpo;

no horizonte ouvem-se a descer

as pregas do teu silêncio. Porto

 



de abrigo, o teu aroma perfumado

rescende à seiva da terra ávida

no pousio de um inverno gelado

preparando o renascer de calma vida.

 



Rebentos, as tuas mãos remetem

às colheitas fartas lá para setembro;

agora, vejo teu perfil estampado

 



no início de nova criação e lembro

as primaveras havidas no passado.

As curvas dos beijos tanto prometem!

 



J M

Mulher vestida de escuro


 



Essa mulher vestida de escuro,

sentada à porta de casa

tinha gravada no olhar a espera.

 



Esperavas o quê, boa mulher?

 

A brisa do vento,

O nascer do pensamento,

O calor da tarde,

A presença dos filhos ausentes.

(Afinal o que sentes?)

 



Esperavas na mesma

porque a tua espera vinha de sempre:

estava-te no sangue da aldeia.

 



Germinava-te na ideia

como as sementes que deitavas à terra

com o mesmo carinho das tuas mãos escuras

acariciando as feridas leves dos teus filhos

limpas com o tacto dos teus lábios.

 



Hoje desabitaste a casa

que parece um deserto sombrio:

a porta fechou-se

e a tua espera está em ti,

mulher vestida de escuro.

 



J M

Ânsias

 

A lua estica o curto pescoço frio
para olhar com ampla curiosidade
as águas rápidas do breve rio
que refletem o casario da cidade.

Ânsias das noites brancas guardadas,
de pensamentos desavindos com a vida;
desesperos, tremuras e alvas geadas
da felicidade há muito desguarnecida.

Refúgio de anquilosados temores
lua fagueira, amparo dos amantes,
conselheira de ínvios amores
e de anseios óbvios e obsidiantes.

Loucura ávida vivida a meias
entre um e outro fundo suspiro,
espasmo doloroso de dores feias
onde suspenso durmo e deliro.

J M

...


Dos tempos da meninice



vêm-me os aromas a terra das tuas mãos

dos tempos da meninice

vem-me a cor dos teus olhos pagãos

 



esses aromas, essa cor

recordam-me as carícias ásperas dos calos

as meiguices desse amor

com os sons mecânicos dos grilos e ralos

 



e a tua voz cansada

sobrepunha-se à cegarrega martirizante

e a tua protecção

dava uma sensação tão terna e calmante

 



mas onde encontrar

tudo isto junto em alguém?

 



... no teu coração, ó Mãe!

 



J M

Spes*


 



O meu mundo está em silêncio imerso,

vive na secção do solitário criativo,

entrega-se a um pensamento disperso

e depois finge apenas estar vivo.

 



Há, porém, o intenso nevoeiro existencial

sem ideias sólidas e afirmativas

onde se sonha o quimérico, o irreal

e se escondem as palavras positivas.

 



Mas, afinal, em doce e produtiva letargia,

despertam lentamente novos ideais

e assim se doma a perversa melancolia

renovando a vida que pede sempre mais.

 



JM



*esperança

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