Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

...


estavam a cozer em fogo lento

os ódios

naquele lugar marcado

por um destino fatal

veio um fogo-fátuo

em chama

sorrateira e leve

e incendiou tudo

i-ne-xo-ra-vel-men-te.

 

 



JM

Viajar


 



Sento-me nas asas do vento

vespertino,

inalo aromas insuspeitos da tarde

desvanecida



e no cais do tempo

embarco na nau de Ícaro

rumo a destino ignoto.

(Pode ser S. Pedro de Rio Seco!)

 



Embrenho-me nos bosques da Estrela

e procuro-me no meio do turbilhão

mas a Aparição de mim a mim mesmo

leva-me apenas

à sabedoria existencial de estar vivo

de ser pensante!

 



Subo as fragas de S. Martinho

e reencontro a luta com o transcendente

bebo a seiva, o mosto, o vinho

e revejo-me só, no imanente.

 



Titãs em luta permanente

encontro o opositor

continuamente

frente a mim

num campo onde se vislumbra a dor

de ser e sofrer até ao fim.

 



JM

Preciso ...


 



Preciso de uma mão amiga

estendida na amarga solidão

que me passe os dedos carinhosos

por minha alma em fadiga

sequiosa de afeição

e doutros bens preciosos.

 



Preciso das tuas palavras

envoltas em doçuras sem ironia

com recheio de chocolate

daquelas que tu lavras

na lua cheia do dia

em que o sol nunca bate.

 



Preciso da tua amizade

sem peias nem atilhos

baseada na compreensão,

na entrega, na felicidade,

que os pais outorgam aos filhos

do fundo do coração.

 



JM

...


tenho comigo um silêncio

repousante

um silêncio quente e frio

ansiante

 



tenho-o no centro de mim

anquilosado

mesmo que o procure não o sei

em qualquer lado

 



gosto dele assim contraditório?

talvez não

pode estar no centro da cabeça

mas fugiu do coração

 



triste tempo triste sina triste lua

onde a alegria?

nem paz nem furor nem alma

onde o sol onde o dia?

 



J M

Nojo(s)


 



Abrir, lavrar o coração

patenteá-lo veia a veia

e mostrar a todos que a razão

essa louca, é quase sempre feia.

 



Gritar ao mundo as loucuras

da sociedade ingrata e injusta

fechando-se a todas as ternuras

desprezando tudo o que custa.

 



Dizer ao mundo o meu nojo

p’lo ódio, opressão, violência

bonecos articulados com merda no bojo

mas se dizem senhores da ciência.

 



J M

EUGÉNIO DE ANDRADE


                        In memoriam

 



Em Eugénio



vi as planícies imensas,

as fileiras de mulheres de negro vestidas,

a lama repleta de clássica beleza,

a poesia vestida de luz e de certeza.

 

De Eugénio



revisitei as mãos envoltas em frutos,

os silêncios desembocados na foz dos afluentes,

os dinheiros que os amantes não tinham,

o rosto precário de uma prosa poética,

e o ostinato rigore dos seus versos.

 



Com Eugénio



ainda vou da Póvoa até à Foz,

ainda faço da palavra o meu lema,

ainda ouço a sua límpida e clara voz,

ainda me renovo no fabuloso do poema.

 



J. M.

CIDADE


 

                                                        a Ary dos Santos



 

A cidade é um chão              de culturas variadas

é fermento corado                 na masseira de suores

e vida fertilizante                   poema de dias melhores

pastor de muitas vidas         rebanho de mil cabeças

esperanças semidesfeitas  glórias bem apregoadas.

 



A cidade é projecção             da luta continuada

todos os dias renasce           na certeza do entardecer

porém ao alvorecer                quando o sol se levanta

há uma angústia latente       no coração dos homens.

 



A cidade constroi malícia     com bondade à mistura

é antro amargo / solidão      ou bar/café de frescura;

lógica entrelaçada                 nos esgares da paixão

onde perdura a noite             na aurora do coração.

 

 



J M

URZE


 



(A M. Torga)

 



A urze bravia vergou.

Da paisagem transmontana

sólida, granítica, humana

ergueu alta a voz: cantou!

 



Rectilínea, áspera, dura,

inflexível na defesa dos valores,

a vida forjou-o nas dores

graníticas da Galafura.

 



Litania murmurada do povo

vozes ancestrais, avatares,

canto da terra árdua, em altares

erguidos nas serranias em renovo.

 



A urze bravia vergou.

Mas, se à natureza cedeu

a raiz de todo não secou:

o espírito, superior, venceu.

 

 



J M

Utopia


 



Quando as pombas forem livres como as andorinhas,

quando às águias não invejarem as louvaminhas;

 



os leões pastarem junto com as ovelhas

e as espadas forem transformadas em relhas;

 



quando os homens destruírem as cadeias,

e não germinarem más e ruins ideias;

 



quando tudo isto suceder

e só o bem acontecer

o reinado do amor começará,

qualquer profecia se cumprirá.

 

 



J M

Raiva absurda


 



Apetece-me morder o chão das palavras,

rasgar-lhe as veias;

vê-las tremer de agonia

prostradas aos pés de mim.

 



Voar no espaço com elas,

percorrer o tempo eterno,

gemer na hora incerta

e gastar até ao âmago

o inegastável segundo.

 



J M – 13.01.2017