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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Onde me me levas rio que cantei.

 

Onde me levas, rio que cantei,
esperança destes olhos que molhei
de pura solidão e desencanto?
Onde me leva?, que me custa tanto.

Não quero que conduzas ao silêncio
duma noite maior e mais completa.
com anjos tristes a medir os gestos
da hora mais contrária e mais secreta.

Deixa-me na terra de sabor amargo
como o coração dos frutos bravos.
pátria minha de fundos desenganos,
mas com sonhos, com prantos, com espasmos.

Canção, vai para além de quanto escrevo
e rasga esta sombra que me cerca.
Há outra fase na vida transbordante:
que seja nessa face que me perca.

Eugénio de Andrade

...

Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser...

Eugénio de Andrade

Dias incertos

"És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças..."

Miguel Torga, Sísifo.

Estes dias que vivemos arrasaram as mentes e danificaram certamente o raciocínio de algumas pessoas. Muitas mesmo. A célebre frase do início "vai ficar tudo bem", está a revelar-se uma mentira fabulosa, sim de fábula. Foi transformada num mito, pois o que hoje em dia verificamos, é que as pessoas em vez de melhorarem no seu humanismo tornaram-se muito mais radicais. Como é possível retirar livros clássicos consagrados pela fruição de milhões de leitores de listas com o argumento falacioso de que são racistas? Então vamos renegar "Os Lusíadas" porque são uma epopeia colonizadora? Ou banir a "Peregrinação" porque ofende os malaios, os indonésios e outros povos maltratados pelos portugueses no Oriente? Sejamos sensatos. Aqueles que se dizem antirracistas e derrubam estátuas por causa de representarem colonizadores ou esclavagistas não estão a cometer um crime de lesa-história? Essa estátuas lembram precisamente o mal que foi feito e podem levar-nos a evitar que volte a suceder. Os livros que representam a história literária de um povo são ficção e por isso são património da humanidade e devem servir-nos de lição para não repetirmos os erros de outras épocas. Não haverá racismo impregnado nas mentes que provocam estes actos? Por detrás das manifestações antirracismo quantas mentes racistas imperam? E os governantes não estarão a tolerar aquilo que pode vir a ser pernicioso para a sociedade? Se somos humanistas não devemos olhar a cor da pele, nem a cor dos olhos, nem a religião professada. Devemos pensar que do outro lado está um ser humano e é por isso que deve ser respeitado nas suas liberdades e nos seus direitos. Quando nos esquecemos disso - e parece que hoje nos esquecemos facilmente disso - nascem os fanatismos, as opressões, a limitação do pensamento. Se as pessoas lessem mais e pensassem por si em vez de se deixarem "lavar mentalmente" pelos programas televisivos de entretenimento reles que só veiculam não-valores e pensassem que as televisões e as redes sociais exploram e transmitem apenas aquilo que interessa ao(s) poder(es) instituído(s), o nosso mundo seria bem melhor. Daí os versos em epígrafe do poeta: "És homem, não te esqueças!"

Daniel Faria

A mão aberta já não liga
E o sol desce tão devagar como o último voo das pombas.
Há nos meus olhos dois poços
Na paisagem
Duas estrelas que ferem como rodas dentadas dentro de máquinas.
E é noite. No meio do escuro peço
Uma pedra incendiada. Pego-a com ambas as mãos
Levo-a à boca e das chamas bebo
Água

Daniel Faria, "Poesia", p. 48

SÚPLICA

 

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.
.
Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

 

MIGUEL TORGA, in CÂMARA ARDENTE

Brinca

Brinca enquanto souberes!
Tudo o que é bom e belo
Se desaprende…
A vida compra e vende
A perdição,
Alheado e feliz,
Brinca no mundo da imaginação,
Que nenhum outro mundo contradiz!
Brinca instintivamente
Como um bicho!
Fura os olhos do tempo,
E à volta do seu pasmo alvar
De cabra-cega tonta,
A saltar e a correr,
Desafronta
O adulto que hás de ser!

Miguel Torga