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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

CAIS

“Ah, todo o cais é uma saudade de pedra.” – Fernando Pessoa

 

Sento-me no cais da tarde

E ouço o vento respirar a saudade.

Penso-me e sinto que arde

O tempo vespertino na idade

 

De uma infância que não tive.

Restauro as imagens guardadas,

O menino de escola e bibe

Regato breve de águas paradas.

 

Espalho-me como Caeiro pela encosta

E sou uma parcela do rebanho pessoal

De um Reis epicurista e que não gosta

De se sentir exageradamente banal.

 

Vejo o cais - da Ode Marítima - eufórico

Da modernidade ascendente e citadina.

E a pedra onde me sento e sinto plectórico

Ergue-se na minha mente em neblina.

 

Eivado de Pessoa, entro no meu destino

De procurar palavras exactas, expressivas,

Mas encontro só o eco inerte sem tino

E deserto de euforias modernas e vivas.

 

J M 30.11.2019

 

Daniel Faria

Dai-me da água ou da resina de um ramo
Ou o baloiço apenas
Da sombra, a verdura que o move
O aroma que sobe o equilíbrio das folhas

Dai-me o oxigénio para aves que passam
O chão de combustíveis adubado pelas águas
Um pássaro de líquido, de vento, de coisas viajadas
O movimento do mundo

O mundo desloca-me em segredo sem que os homem mudem

Daniel Faria, "Dos Líquidos"

MUSA AUSENTE

 

Falta a luz dos teus olhos na paisagem
O oiro dos restolhos não fulgura.
Os caminhos tropeçam, à procura
Da recta claridade dos teus passos.
Os horizontes, baços,
Muram a tua ausência.
Sem transparência,
O mesmo rio que te reflectiu
Afoga, agora, o teu perfil perdido.
Por te não ver, a vida anoiteceu
À hora em que teria amanhecido..

 

MIGUEL TORGA, DIÁRIO IX

Mário Cesariny de Vasconcelos (m. 26.11.2006)

Homenagem a cesário verde

Aos pés do burro que olhava para o mar
depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas cozidas

Pouco depois cada qual procurou
com cada um o poente que convinha.
Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde
que ainda há passeios ainda há poetas cá no país!

                     Mário Cesariny

Eugénio de Andrade

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão.
O seu corpo perfeito, linha a linha,
derramava-se no meu, e eu sentia
nele o pulsar do próprio coração.

Moreno, era a forma das pedras e das luas.
Dentro de mim alguma coisa ardia:
a brancura das palavras maduras
ou o medo de perder quem me perdia.

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão
e longamente bebi os horizontes.
E longamente fiquei até sentir
o meu sangue jorrar nas próprias fontes.

Eugénio de Andrade, "As Mãos e Os Frutos"

O´Neill

 

REDACÇÃO

Uma senhora pediu-me
um poema de amor.

Não de amor por ela,
mas "de amor, de amor".

À parte aquelas
trivialidades
«minha rosa, lua
do meu céu interior»
que podia eu dizer
para ela, a não destinatária,
que não fosse por ela?

Sem objecto, o poema
é uma redacção
dos 100 Modelos
de Cartas de Amor.

 

ALEXANDRE O'NEILL, DEZANOVE POEMAS

Sophia 1919-2019

 

[QUE POEMA, DE ENTRE TODOS OS POEMAS]

Que poema, de entre todos os poemas,
página em branco?
Um gesto que se afaste e se desligue tanto
Que atinja o golpe de sol nas janelas.

Nesta página só há angústia a destruir
Um desejo de lisura e branco,
Um arco que se curve - até que o pranto
De todas as palavras me liberte.

 

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in CORAL

Sophia 1919-2019

A memória das palavras

 

(Ainda) Sophia

 

    Em Sophia há uma escrita realizada em plenitude esclarecida. Construída com base no valor das palavras e nos valores de uma sociedade em transformação paulatina e orientada pela ideologia do, tristemente célebre, estado novo. As suas palavras, quer nos poemas, quer noutros géneros de escrita são sempre conscientes e didácticas. A par da revelação de um mundo injusto, percorre os lamentos, litânicos  algumas vezes, de uma religião adulterada e adulteradora (Porque os outros se mascaram mas tu não).

     Os temas recorrentes perpassam quase sempre pelos mesmos tópicos: a Grécia, o sol, o mar, o branco e o azul. Cinco palavras-paixão para a escritora. A Grécia, mais espaço cultural que físico, foi uma das atrações primordiais tantas vezes percorrida, tantas vezes bebida. Sintam-se os poemas de “Geografia” e “ Navegações” e ficamos imersos na paixão pela clareza da antiguidade e dos espaços de eleição: Creta, Delfos, Atenas, Cnossos. Berços exemplares de uma civilização feita de harmonia, isto é, tentativas de harmonia do ser humano com os deuses. O fogo que esclareceu a civilização europeia até aos nossos dias.

     Depois paralelamente com a Grécia, o sol. Também ele claro, brilhante, iluminador. Elemento necessário à capacidade de transformar, de criar. Ou de destruir? Não me parece que seja neste sentido, nem vejo onde, na obra de Sophia, possamos ver esta componente simbólica. Mas o sol, sempre o sol, condição essencial ao acto poético, à claridade das palavras. A transfiguração de uma realidade baça e cinza. A denúncia de dias cinzentos, negros e tristes.

     Necessário à sua respiração poética vem inexoravelmente o mar. Poseidon revisitado constantemente. Força centrípeta na sua escrita, força revigoradora e calmante. O mar da praia da Granja, o mar de Lagos e Cacela, o mar Egeu – mãe criadora. O mar difusor de cultura forjador da diáspora homérica. O mar espelhado. O mar re-ligador original. O mar a quem nunca se poderá fugir, nem se quer fugir. O mar, o mar, o MAR.

     E as cores: branco e azul. Branco da cal. Branco do horizonte. Branco da espuma. Branco da cultura. Branco dos ideais. Branco do olhar. Branco do fumo. Branco das casas. Branco das palavras. E azul do mar, claro. Azul do céu. Azul das ideias. Azul transparente. Azul diáfano. Azul de coral. Azul de humanidade.

     Uma nota final: a RTP1 passou há dias um filme de Manuel Mozos sobre Sophia que não se deve deixar de ver. Recuperou muitos documentos em que a poeta aparece quer a falar sobre poesia, quer a recitá-la. A poeta aparece íntegra, sem adaptações, sem modificações. Nas palavras de que tanto gostava, mas que lhe causavam arrepios e com que não tinha medo de encarar a vida. Ou como escreveu a jornalista Joana Emídio Marques: ““Um dia mortos e gastos voltaremos a ser livres como os animais”, diz-nos o poema que ela recita com uma entoação que nos causa estranheza porque é declamatória. Mas é também um prodígio da articulação limpa das palavras, das sílabas. Como se Sophia quisesse chegar à mais ínfima tonalidade dos fonemas. Cada palavra é gerada para ser dita e é nessa música efémera das palavras faladas e não escritas que se engendra a poesia. Manuel Mozos rasgou nestes dias uma janela para Sophia respirar de novo, ela que um dia escreveu: “Ressurgiremos onde as palavras são o nome das coisas”.” (Observador, 26.10.2019)

[Último texto no âmbito do centenário de Sophia publicado hoje no Jornal "A Guarda"]

Sophia 1919-2019


GOESA

Tudo era atravessado por um rio de memórias
E brisas subtis e lentas se cruzavam
E enquanto lá fora balançavam
Os grandes leques verdes das palmeiras
Uma rapariga descalça como bailarina sagrada
Atravessou o quarto leve e lenta
Num silêncio de guitarra dedilhada

 

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, O BÚZIO DE CÓS E OUTROS POEMAS

José Mário Branco (1942-2019)

Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte

 

Natália Correia

[A música e a poesia de mãos dadas.]

 

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