Dai-me da água ou da resina de um ramo Ou o baloiço apenas Da sombra, a verdura que o move O aroma que sobe o equilíbrio das folhas
Dai-me o oxigénio para aves que passam O chão de combustíveis adubado pelas águas Um pássaro de líquido, de vento, de coisas viajadas O movimento do mundo
O mundo desloca-me em segredo sem que os homem mudem
Falta a luz dos teus olhos na paisagem O oiro dos restolhos não fulgura. Os caminhos tropeçam, à procura Da recta claridade dos teus passos. Os horizontes, baços, Muram a tua ausência. Sem transparência, O mesmo rio que te reflectiu Afoga, agora, o teu perfil perdido. Por te não ver, a vida anoiteceu À hora em que teria amanhecido..
Homenagem a cesário verde
Aos pés do burro que olhava para o mar
depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas cozidas
Pouco depois cada qual procurou
com cada um o poente que convinha.
Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde
que ainda há passeios ainda há poetas cá no país!
Mário Cesariny
Em Sophia há uma escrita realizada em plenitude esclarecida. Construída com base no valor das palavras e nos valores de uma sociedade em transformação paulatina e orientada pela ideologia do, tristemente célebre, estado novo. As suas palavras, quer nos poemas, quer noutros géneros de escrita são sempre conscientes e didácticas. A par da revelação de um mundo injusto, percorre os lamentos, litânicos algumas vezes, de uma religião adulterada e adulteradora (Porque os outros se mascaram mas tu não).
Os temas recorrentes perpassam quase sempre pelos mesmos tópicos: a Grécia, o sol, o mar, o branco e o azul. Cinco palavras-paixão para a escritora. A Grécia, mais espaço cultural que físico, foi uma das atrações primordiais tantas vezes percorrida, tantas vezes bebida. Sintam-se os poemas de “Geografia” e “ Navegações” e ficamos imersos na paixão pela clareza da antiguidade e dos espaços de eleição: Creta, Delfos, Atenas, Cnossos. Berços exemplares de uma civilização feita de harmonia, isto é, tentativas de harmonia do ser humano com os deuses. O fogo que esclareceu a civilização europeia até aos nossos dias.
Depois paralelamente com a Grécia, o sol. Também ele claro, brilhante, iluminador. Elemento necessário à capacidade de transformar, de criar. Ou de destruir? Não me parece que seja neste sentido, nem vejo onde, na obra de Sophia, possamos ver esta componente simbólica. Mas o sol, sempre o sol, condição essencial ao acto poético, à claridade das palavras. A transfiguração de uma realidade baça e cinza. A denúncia de dias cinzentos, negros e tristes.
Necessário à sua respiração poética vem inexoravelmente o mar. Poseidon revisitado constantemente. Força centrípeta na sua escrita, força revigoradora e calmante. O mar da praia da Granja, o mar de Lagos e Cacela, o mar Egeu – mãe criadora. O mar difusor de cultura forjador da diáspora homérica. O mar espelhado. O mar re-ligador original. O mar a quem nunca se poderá fugir, nem se quer fugir. O mar, o mar, o MAR.
E as cores: branco e azul. Branco da cal. Branco do horizonte. Branco da espuma. Branco da cultura. Branco dos ideais. Branco do olhar. Branco do fumo. Branco das casas. Branco das palavras. E azul do mar, claro. Azul do céu. Azul das ideias. Azul transparente. Azul diáfano. Azul de coral. Azul de humanidade.
Uma nota final: a RTP1 passou há dias um filme de Manuel Mozos sobre Sophia que não se deve deixar de ver. Recuperou muitos documentos em que a poeta aparece quer a falar sobre poesia, quer a recitá-la. A poeta aparece íntegra, sem adaptações, sem modificações. Nas palavras de que tanto gostava, mas que lhe causavam arrepios e com que não tinha medo de encarar a vida. Ou como escreveu a jornalista Joana Emídio Marques: ““Um dia mortos e gastos voltaremos a ser livres como os animais”, diz-nos o poema que ela recita com uma entoação que nos causa estranheza porque é declamatória. Mas é também um prodígio da articulação limpa das palavras, das sílabas. Como se Sophia quisesse chegar à mais ínfima tonalidade dos fonemas. Cada palavra é gerada para ser dita e é nessa música efémera das palavras faladas e não escritas que se engendra a poesia. Manuel Mozos rasgou nestes dias uma janela para Sophia respirar de novo, ela que um dia escreveu: “Ressurgiremos onde as palavras são o nome das coisas”.” (Observador, 26.10.2019)
[Último texto no âmbito do centenário de Sophia publicado hoje no Jornal "A Guarda"]
Tudo era atravessado por um rio de memórias E brisas subtis e lentas se cruzavam E enquanto lá fora balançavam Os grandes leques verdes das palmeiras Uma rapariga descalça como bailarina sagrada Atravessou o quarto leve e lenta Num silêncio de guitarra dedilhada
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, O BÚZIO DE CÓS E OUTROS POEMAS