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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Sophia (1919 - 2019)

A memória dos dias

Sophia (1919 – 2019)

     Toda a escrita de Sophia parte do real e da condição do ser humano integrado numa sociedade eivada de contradições. Mas há um tema que é intensamente tratado nas primeiras obras e que acompanhará as palavras da autora até ao final: o mar e sua envolvência. Quem conhece minimamente a poesia de Sophia citará sem dificuldade qualquer verso em que há uma referência ao mar, ou à água, ou à praia. Segundo a escritora este não é o único ponto de partida, mas ele surge com uma frequência impressionante nos poemas dos primeiros livros. Recordemos as suas palavras: “Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta.” (Discurso proferido em 1964). Assim, ela reconhece que a par do mar, há também a influência do ar e da luz. Este é um ponto de vista inicial. Posteriormente, nas artes poéticas diria, ou acrescentaria, ou nomearia outras linhas fortes da sua temática. O mar sempre a atraiu e muitas vezes regressa à casa inicial (Granja), (casa branca em frente ao mar enorme – Casa branca, Poesia) onde bebeu esse gosto intenso pela água e pela claridade. Por isso a sua poesia é líquida e transparente. As suas palavras são diáfanas como a água mais límpida e fresca e fazem o leitor integrar-se no seu mundo que é afinal o nosso mundo. Como refere em muitos versos, partiu sempre da procura quer dos outros quer de si mesmo. No livro “Mar Novo”, no poema “Biografia” reforça a ideia:

Tive amigos que morriam, amigos que partiam

Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.

Odiei o que era fácil

Procurei na luz, no mar, no vento.

Mas o mar acompanhou-a ao longo da vida. Logo no primeiro livro de poemas, Poesia (1944), há vários poemas onde há a presença do mar e da água. O quarto poema intitulado precisamente “Mar” e contém versos dos mais conhecidos da sua poesia:

            “De todos os cantos do mundo

Amo com um amor mais forte e profundo

Aquela praia extasiada e nua,

Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.”

Em quatro versos sintéticos, conseguiu exprimir aquilo que realmente sentia e vivia e mostrar a elevação das suas palavras. A verdade procurada na força do mar largo, pois No mar alto / A luz escorre / Lisa sobre a água. A procura incessante da justiça sem peias nem influências. A justiça      imparcial que aperfeiçoará a sociedade se for inspirada na luz branca de Creta.

     A mudança para Lisboa, separando-a do mar juvenil, teve impacto na sua obra, mas acabaria por gostar da cidade: “Quando eu era nova e vim para Lisboa senti-me longíssimo da praia porque no Porto vivia mais perto do mar. Não gostava de Lisboa, tinha uma grande nostalgia do Norte.” Essa quase obsessão pelo mar leva-a a viajar sempre que podia e a apaixonar-se pela civilização grega e pela cultura clássica. A talassocracia grega viria a tornar-se referência fundamental da sua escrita.

     Se o leitor quiser conhecer melhor a obra da autora e confirmar a importância do mar passe o olhar pelos títulos da sua vasta bibliografia ou mergulhe quer na poesia, quer na narrativa. E, como epílogo deste texto, ficam outros dois versos que são da mais bela “Inscrição” da poesia portuguesa:

            Quando eu morrer voltarei para buscar

            Os instantes que não vivi junto do mar

 

 

José Monteiro

 

[Texto publicado no jornal "A Guarda", de 11.09.2019. Celebrando o centenário de nascimento.]