TERRAS DO DEMO
A memória das palavras
TERRAS DO DEMO
Se ler Aquilino na altura em que viveu e publicou os seus livros era uma aventura só ao alcance de alguns, hoje será de certeza um trabalho hercúleo para a maior parte dos portugueses, quanto mais para um simples estudante do secundário. Aliás, as obras de Aquilino já não fazem parte dos programas do secundário há uns anos largos.
Passam este ano os 100 anos da publicação de um romance emblemático de um dos maiores escritores do século XX: “Terras do Demo”. Foi em 1919 que foi editado o romance e catapultou Aquilino para o mercado editorial. O título passou a designar a região em que decorre a acção da narrativa e que, como diz o seu autor no prólogo, tenta retratar uma vida aldeã que fervilha indiscriminadamente em cada ser, mas também em cada recanto de um espaço muito sui generis e ainda na fauna e flora típicas dessas terras perdidas nas serranias do interior mais profundo de um Portugal dominado por ideias mesquinhas e políticos perdidos na grande cidade. A aldeia serrana, como aquela em que fui nado e baptizado e me criei são e escorreito, é assim mesmo: barulhenta, valerosa, suja, sensual, avara, honrada, com todos os sentimentos e instintos que constituíam o empedrado da comuna antiga. Ainda ali há Abraão e os santos vêm à fala com os zagais nos silenciosos montes; ali roda o velho carro visigótico nos caminhos romanos, mais velhos que eles. (…) A vida é, de resto, sempre curiosa. Quando se ergue uma lancha em terra húmida de lameira, acontece fervilhar aos nossos olhos toda uma fauna prodigiosamente multicolor. Vive ali em cantões, paredes meias, esta bicharada que a conspícua zoologia distribui em nébrias. Mas também ali se encontram por vezes: o bicho-de-conta tímido; a centopeia monástica; uma cabrinha preta; no Verão, o grilo cantarola. (Aquilino Ribeiro, Terras do Demo.)
Deste excerto do prólogo, dedicado a Carlos Malheiro Dias, podemos supor o conteúdo: por um lado, uma linguagem castiça, rústica, cheia de regionalismos, por outro, a preocupação de transmitir com muita fidelidade as serras, as pessoas e os costumes. E a aldeia desfila diante dos nossos olhos de leitor contando as anedotas, os aleijões que o ser humano, terrível caricaturista, vai criando paulatinamente. Vemos os sucessos e as desditas dos membros daquela sociedade fechada e mesquinha, mas capaz de dar a camisa quando o amigo ou a o rival a necessitam. Vemos o ser humano racional a emparceirar com o bruto animal, doméstico ou montanhês, (quem não se lembra da salta-pocinhas aquiliniana?). Vemos uma etnografia genuína, cheia de tradições e crenças ancestrais que recuam a Adão e Eva. É este mundo agreste, mas irresistível, que o autor vai desdobrando ante os nossos olhos atónitos com uma realidade pintada magistralmente. E a língua castiça que as personagens usam e que mostram um português retinto, aldeão, regional. Sem deslustre de quem o usa, naturalmente. Motivo de orgulho de um mundo instintivo e natural. A riqueza do léxico está na novidade com que retrata o mundo rural que, disse Eduardo Lourenço, "não estaria apenas no olhar quase etnográfico que será o seu acerca da realidade beirã em que ele mesmo enraíza, mas na textura verbal igualmente mimética, tradutora, com a mais crua fidelidade, do falar serrano".
Nascido em Soutosa, Moimenta da Beira, apesar de ter corrido mundo por causa das suas ideias revolucionárias, nunca traiu as palavras que aprendeu na escola materna. Imortalizou-as nas suas obras e ainda aí estão para quem as quiser conhecer. No mundo citadino em que vivemos é difícil recuar a esse vocabulário telúrico, mas ajuda-nos a perceber a evolução da língua e a riqueza de um idioma que deu novos mundos ao mundo. As terras do demo são aqueles lugares onde a lenda se exprimia deste jeito: “Uma vez um homem travou do bordão e partiu a correr as sete partidas do Mundo. Andou, andou, até que foi dar a uma terra de que ninguém faz ideia: a gente comia calhaus e ladrava como os cães”.
A propósito deste centenário as autarquias das terras do demo, Moimenta da Beira, Sernancelhe e Vila Nova de Paiva, promovem até dia 2 de Junho várias iniciativas culturais.
José Manuel Monteiro
[Texto de hoje no jornal "A Guarda"]