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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Está alguém em casa?

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     E ali estavam. Sentados à lareira, olhando o vazio ou um programa estúpido que passava na televisão e que não se adequava à solenidade da noite! Esperavam, talvez um milagre, que outra coisa já não havia que esperar. A desesperança instalara-se.

Antigamente não era assim. A casa estava cheia. Primeiro com os filhos. Depois veio o reboliço dos netos: ninguém parava sossegado. A mesa era posta na sala grande e sempre cheia de acepipes. E, à sua volta, a correria do costume. Os homens refastelados nas cadeiras iam petiscando e bebericando qualquer coisita e as mulheres atarefadas com os últimos preparativos preparavam cuidadosamente o bacalhau e as couves, o polvo, quando o dinheiro já dava para uns extras, no arroz da tradição, trazida das grandes cidades e as sobremesas onde pontificava o excelente arroz doce feito pelo carinho extremoso da dona de casa. Aproveitava-se o tempo de pausas para pôr a conversa em dia especialmente sobre aqueles que tinham vindo de mais longe e para trocar impressões sobre o futuro que aparecia no limiar da porta.

     Aos poucos, no entanto, os netos foram crescendo e ganhando a sua autonomia. Apareciam raras vezes, de fugida, e corriam novamente para os seus lugares, que a aldeia não tinha futuro para eles. E assim, paulatinamente, a solidão foi tomando conta das suas vidas. Nem nesta noite de Natal já voltavam para confraternizar com os velhotes. Parecia que o mundo se tinha esquecido deles e até os filhos, entregues às suas vidas absorventes, primavam pela ausência. Que sociedade esta! E lá estava a televisão a noticiar que abriu uma creche para animais ali bem perto, na grande cidade. E um deputado qualquer, dum partido dispensável, como mais dois ou três, defendia convictamente a existência de cuidados paliativos para animais. Santo Deus-Menino!

     - Já viste, Tó Maria, como está tudo ao contrário? Os animais têm quem cuide deles e quem os acompanhe e nós para aqui sozinhos!

    - Tens razão, Mizé, já nada é como dantes! Vê como os nossos filhos nos deixaram aqui sozinhos! Será que ao menos o Tó Mané, que está separado, não nos podia ter feito companhia?

     - Deixa-o lá, homem! Ele ainda não superou o que lhe fez aquela doida! E, se tivesse vindo, também não seria boa companhia. Era capaz de exagerar na bebida e ainda ficávamos mais preocupados.

     - Tens razão, mulher! Lá ficou com aquele amigo leal e com os filhos. Oxalá tudo lhe corra bem!

       Como era possível, pensaram eles, embora não o dissessem, dar-se tanto valor aos animais e desprezar tantíssimo os seres humanos! Não é que não gostassem dos animais: não dispensavam a companhia do seu Farrusco, cão de guarda mais fiel que a guarda pretoriana, e do seu Ronrom, aninhado ali no colo, tornando a solidão menos cruel. Mas se fosse preciso optar entre os animais da casa e os filhos, logicamente estes estariam em primeiro lugar. E lá vinha à memória o verso do poeta ouvido algures: “que mundo, coitadinha!”

     E a televisão, depois duns cabeceamentos de sono invasivo, voltava ao ataque com uma reportagem sobre os sem-abrigo mostrando o Presidente a comer a ceia de Natal, no meio de uma série de seres com marcas de uma vida amargurada, todo sorridente e afável para os repórteres de imagem. E devia ser mesmo só para a imagem! E nos outros 364 dias do ano onde estava o Presidente e a sua solidariedade? Onde estão as decisões do Governo para melhorar a vida daqueles que tiveram a infelicidade de ficar sem nada? Se não fosse o voluntariado de meia dúzia de cidadãos conscientes, nem nesta noite teriam apoio. Mas afinal não era o que se passava com eles para ali sozinhos, na noite de Consoada? E aquela pergunta reabriu a ferida do abandono. Com tantos filhos e netos, nem um sequer tinha aparecido para estar com eles.

     - Olha, Tó, para o ano convidamos o Presidente, pode ser que ele traga o bacalhau branquinho da Noruega. E nos faça companhia.

     - Tens razão, Mizé! Pelo menos, com o jeito que ele tem, contava-nos umas histórias para alegrar a noite. Ao menos isso ele sabe fazer bem!

     Ainda se entretiveram durante alguns minutos a fazer as orações da época, aprendidas com os Pais e que tinham ficado na memória de uma religião transmitida através de fórmulas papagueadas na catequese. Sempre foram pessoas cumpridoras das obrigações eclesiais. Se ao menos houvesse ali, na igreja da terra, a missa do Galo, ainda fariam o esforço de lá ir, bem agasalhados, pois o frio da meia-noite não era bom conselheiro e uma constipação, numa altura destas, seria inconveniente. Já tinham tomado a vacina há um mesito atrás, mas mais valia prevenir!

     - Ó Tó, não ouviste? Anda alguém lá fora!

     - Deves estar a ouvir coisas. Deve ter sido o vizinho a deitar de comer ao cão. Além disso o Farrusco não ladrou.

     - Ná, o Ti Manel não fazia aquele barulho! De certeza que anda aí alguém a rondar. Pode ser alguém conhecido!

     - Foi impressão tua. Há poucochinho estavas para aí a cabecear, foi sonho.

     De repente, ouviram-se umas pancadas na porta e uma voz conhecida inquiriu:

     - Está alguém em casa?

 

José Manuel Monteiro

 

[Texto publicado no jornal "A Guarda", de 20.12.2018]

POEMA DE NATAL

Nos arredores da cidade tenho uma lareira. 
Acendo-a e creio que nem seria Natal 
Sem a chama avermelhada dum monte de madeira 
E o calor de dentro de cada um íntimo sinal

 

Esqueçamos o fumo o acto de fumegar e o cheiro 
E a barriga aconchegada o que nos vai custar; 
O menino nasceu, há tempo da Páscoa chegar 
Um tempo de repouso um riso ao mudar-lhe o cueiro

 

Nem haveria Natal sem frio e sol e quem me dera 
Voltar a um coração de criança neste dia; 
Acreditar no que é próprio natural a alegria 
De quem nada receia tudo sabe e tudo espera...

 

Assim penso fixando e remexendo as brasas da lareira. 
É Natal, sim, é Natal desta e de muita outra maneira.

 

Em Lisboa pelo Natal... / Cristino Cortes. - 1ª ed. - Pragal-Almada : Ulmeiro, 1995.


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Povoamento

No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera

 

Ruy Belo, "Aquele Grande Rio Eufrates"

...

Coimbra, 15 de Dezembro de 1984.

 

CLANDESTINIDADE

Horas nocturnas de libertação.

Todos os carcereiros na prisão

Do sono.

Dono

Dos sentimentos,

Do instinto

E da razão,

Sonho,

Penso,

Imagino.

Faço o pino

Deitado.

E às vezes é-me dado

Neste desatino,

Por invisíveis mãos

A que nem sequer posso agradecer,

Um poema obscuro

Que de manhã, à luz do sol, procuro

Claramente entender.

 

Torga, Diário XVI