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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

OS PÁSSAROS NASCEM NA PONTA DAS ÁRVORES

 

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As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
Deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
Quando o Outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
Mas deixo essa forma de dizer ao romancista
É complicada e não se da bem na poesia
Não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração.

 

Ruy Belo

Meditação

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Às vezes, quando a noite vem caindo, 
Tranquilamente, sossegadamente, 
Encosto-me à janela e vou seguindo 
A curva melancólica do Poente.


Não quero a luz acesa. Na penumbra, 
Pensa-se mais e pensa-se melhor. 
A luz magoa os olhos e deslumbra, 
E eu quero ver em mim, ó meu amor! 

Para fazer exame de consciência 
Quero silêncio, paz, recolhimento 
Pois só assim, durante a tua ausência, 
Consigo libertar o pensamento.


Procuro então aniquilar em mim, 
A nefasta influência que domina 
Os meus nervos cansados; mas por fim, 
Reconheço que amar-te é minha sina.


Longe de ti atrevo-me a pensar 
Nesse estranho rigor que me acorrenta: 
E tenho a sensação do alto mar, 
Numa noite selvagem de tormenta.

  
Tens no olhar magias de profeta 
Que sabe ler no céu, no mar, nas brasas... 
Adivinhas... Serei a borboleta 
Que vendo a luz deixa queimar as asas.


No entanto — vê lá tu!— Eu não lamento 
Esta vontade que se impõe à minha... 
Nem me revolto... cedo ao encantamento... 
— Escrava que não soube ser Rainha!

 

Fernanda de Castro.

 

POÉTICA

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O poema segue as premissas da guerrilha urbana.
Jamais revela identidades e endereços. Estabelece
que pontos de contacto não sejam escritos, apenas
memorizados. Cancela dos seus arquivos nomes
legais ou ilegais e toda a espécie de informação
biográfica, mapas e planos. Não permite a ninguém
conhecer a globalidade dos elementos em
campo.

 

José Tolentino Mendonça.

Lembrando Cesário

 

Sentado na mesa do café devasso
Olho a paisagem vestida a verde
Extasiam-se-me os olhos no poente,
E revejo a tua Milady, ó Cesário Verde!

 

Sem desprimor para a airosa rapariga
Portuguesa de lei e bem elegante
Que passa simples e descontraída
No seu fato de treino desestressante.

 

Ao longe, as eólicas lutam desesperadas
Contra a força intensa do frio norte
E as árvores, nesta altura, desfolhadas
Agitam os ramos perdido já o porte.

 

E vêem-me à memória uns dias estivais
Cheios de emoções e passeio matutino
Intensos, secos, avessos a vendavais
Iludindo a força secreta do fatal destino.

 

Triste condição humana: efemeridade!
Tudo é passageiro e fugaz e inexorável!
Sensações enganadoras de felicidade!
Ilusões perdidas de uma vida: lamentável!

 

(Sorriso cúmplice de mãe e filha
Que termina em sonora gargalhada,
Foi uma pequena maravilha
Iluminando a tarde enevoada!)

 

JM - 16.03.2010

Foto de José Manuel Monteiro.
 
 

Sem remédio

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Aqueles que me têm muito amor 
Não sabem o que sinto e o que sou ... 
Não sabem que passou, um dia, a Dor 
À minha porta e, nesse dia, entrou. 

E é desde então que eu sinto este pavor, 
Este frio que anda em mim, e que gelou 
O que de bom me deu Nosso Senhor! 
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!! 

Sinto os passos da Dor, essa cadência 
Que é já tortura infinda, que é demência! 
Que é já vontade doida de gritar! 

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio, 
A mesma angústia funda, sem remédio, 
Andando atrás de mim, sem me largar! 

Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas" 

Garrett - 04.02.1799

 

 

Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela.
Que é tão bela,
Oh pescador?

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela,
Só de vê-la,
Oh pescador.

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela
Foge dela
Oh pescador!

Solemnia Verba

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Disse ao meu coração: Olha por quantos 
Caminhos vãos andámos! Considera 
Agora, desta altura, fria e austera, 
Os ermos que regaram nossos prantos...


Pó e cinzas, onde houve flor e encantos! 
E a noite, onde foi luz a Primavera! 
Olha a teus pés o mundo e desespera, 
Semeador de sombras e quebrantos!


Porém o coração, feito valente 
Na escola da tortura repetida, 
E no uso do pensar tornado crente,


Respondeu: Desta altura vejo o Amor! 
Viver não foi em vão, se isto é vida, 
Nem foi demais o desengano e a dor.

LUA CHEIA

 

nas palavras lavo os panos tristes
que ao fim de uma estação retêm agora
a sensação dos dias, o lume dos passos.
.
sinto que é um outro tempo,
um outro jeito de dobrar esquinas,
um outro modo de pisar a terra
- é tudo isto comprimido num pulso,
cingido dentro de veias como pequenas vozes
mudadas em canções ao acordar do ano.
.
vem, vem comigo, neste magnífico nascimento,
ouvir bater a espuma no cinzento das rochas,
e deixar passar as horas como quem flutua
à tona do tempo, inteiramente mergulhado no mundo
- vem dormir sob o luminoso manto da lua cheia.
.
hei-de dizer-te um dia
como se escolheu a cor do mar.

 

VASCO GATO, Um mover de mão.

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