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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

BMEL / Afonso Lopes Vieira

Afonso Lopes Vieira

“Esta palavra saudade,

Aquele que a inventou,

A primeira vez que a disse

 Com certeza que chorou”

 

     Quem fez a primária em meados do século XX, encontrou nos livros de leitura muitos poemas feitos em toada popular e de fácil memorização. Desde a incontornável “Balada da neve” do nosso Augusto Gil até algumas quadras de António Aleixo, outros poemas recorrentes são os de Afonso Lopes Vieira. Quem não se lembra do poema “Passarinhos” ou da “Dança do vento”? Sobrevinda a revolução dos cravos, estes autores desapareceram das seletas e dos manuais porque supostamente eram coniventes com o regime salazarista. Esqueceram-se os censores que alguns destes poetas foram opositores ao dito regime pelo menos em determinada fase da sua vida. No caso do nosso poeta, o livro “Éclogas de agora” (1937) foi apreendido pela PIDE e proibida a sua edição.

     Afonso Lopes Vieira foi um profícuo poeta que viveu nos finais do século XIX e princípios do seculo XX (1878-1946). Natural de Leiria, tirou o Curso de Direito em Coimbra e posteriormente foi residir para Lisboa, onde, na casa do Largo da Rosa, recebeu e conviveu com gente dos vários ramos da arte e da cultura portuguesas. O bichinho da escrita foi provavelmente herdado de um tio-avô escritor, Rodrigues Cordeiro, poeta ultrarromântico e jornalista. Começou a dedicar-se às letras desde cedo e “pertenceu a uma geração de homens animados por ideais renascentistas, homens para quem literatura e Pátria eram realidades conaturais, a uma cabendo uma missão orientadora e sendo a outra uma entidade fundamentalmente espiritual e linguística.” (Dicionário Cronológico de Autores Portugueses) Foi um dos mentores ou pelo menos ativo apoiante da Campanha Vicentina que promoveu o regresso das obras de Gil Vicente aos currículos escolares do século XX.

   A região de Leiria sempre lhe serviu de refúgio e, quando podia, deixava Lisboa para se retirar na sua casa de S. Pedro de Moel, especialmente nos meses de Verão. Por isso o Mar e o Pinhal são os principais motivos da sua poética. Nestas paisagens o poeta confessa sentir-se “mais em família com o chão e com a gente», evidenciando no seu tratamento uma apetência para motivos líricos populares e nacionais. Essencialmente panteísta, leu e fixou as gentes, as crenças, os costumes, e as paisagens de uma Estremadura que interpretou como «o coração de Portugal, onde o próprio chão, o das praias, da floresta, da planície ou das serras, exala o fluido evocador da história pátria; província heroica, povoada de mosteiros e castelos.” (Nova demanda do Graal).

Defensor acérrimo da nacionalidade e do patriotismo, lutou toda a vida pela recuperação dos grandes escritores da lusitanidade como Camões. Destaca-se ainda o seu humanismo que se manifestou quer no mecenato de vários artistas a quem pagou o curso, quer na doação da sua casa em S. Pedro de Moel, para Colónia Balnear dos filhos dos operários vidreiros, bombeiros e trabalhadores das matas nacionais.

    As suas casas quer de Lisboa, quer de S. Pedro de Moel, foram, como se referiu acima, centros de tertúlia de escritores e intelectuais. Por aí passaram nomes sonantes da época: escritores, pintores, escultores e gente do teatro como as irmãs Rey Colaço. Também os nossos Augusto Gil e Nuno de Montemor foram desse círculo, como o prova a célebre frase “alma brava e meiga” com que definiu este último escritor. Foi um dos pioneiros a propor que a fotografia fosse considerada uma arte.

     Em boa hora, a nossa Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, pela mão do seu ainda diretor, Américo Rodrigues, que tão bom trabalho fez na promoção de autores nacionais e guardenses, dedicou este mês de janeiro à figura deste poeta esquecido. Não só a exposição sobre a vida e obra do poeta, mas também conferências e recitais, recordaram-nos a obra poética e cultural deste homem das letras, figura ímpar da literatura dos conturbados anos da implantação da República até ao início do estado novo de tão má memória.

José Manuel Monteiro

(Texto publicado no jornal "A Guarda" de 01.02.2018)

A Despedida

Poeta António Correia de Oliveira.jpg

(1879 - 1960) 

 

Três modos de despedida 
Tem o meu bem para mim: 
- «Até logo»; «até à vista»: 
Ou «adeus» – É sempre assim. 

«Adeus», é lindo, mas triste; 
«Adeus» … A Deus entregamos 
Nossos destinos: partimos, 
Mal sabendo se voltamos. 

«Até logo», é já mais doce; 
Tem distancia e ausência, é certo; 
Mas não é nem ano e dia, 
Nem tão-pouco algum deserto. 

Vale mais «até à vista», 
Do que «até logo» ou «adeus»; 
«À vista», lembra, voltando, 
Meus olhos fitos nos teus. 

Três modos de despedida 
Tem, assim, o meu Amor; 
Antes não tivesse tantos! 
Nem um só… Fora melhor. 

António Correia de Oliveira

Tens os olhos de Deus

 

(Letra e Música de Pedro Abrunhosa)

 

Tens os olhos de Deus

E os teus lábios nos meus

São duas pétalas vivas.

E os abraços que dás,

São rasgos de luz e de paz

Num céu de asas feridas,

E eu preciso de mais,

Preciso de mais.

 

Dos teus olhos de Deus,

Num perpétuo adeus 

Azuis de sol e de lágrimas,

Dizes: ‘Fica comigo

És o meu porto de abrigo,

E a despedida uma lâmina!’.

Já não preciso de mais,

Não preciso de mais.

 

Embarca em mim,

Que o tempo é curto

Lá vem a noite

Faz-te mais perto.

Amarra assim 

O vento ao corpo,

Embarca em mim

Que o tempo é curto.

Embarca em mim.

 

Tens os olhos de Deus,

E cada qual com os seus

Vê a lonjura que quer,

E quando me tocas por dentro

De ti recolho o alento

Que cada beijo trouxer.

E eu preciso de mais,

Preciso de mais.

 

Nos teus olhos de Deus

Habitam astros e céus,

Foguetes rosa e carmim,

Rodas na festa da aldeia

Palpitam sinos na veia

Cantam ao longe que ‘sim!’.

Não preciso de mais,

Não preciso de mais.

 

Embarca em mim,

Que o tempo é curto

Lá vem a noite

Faz-te mais perto.

Amarra assim 

O vento ao corpo,

Embarca em mim

Que o tempo é curto.

Embarca em mim.

 

 

Ariane

torga pide.jpg

 (Fotos de Miguel Torga nos registos da PIDE)



Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco, frio,
A este rio Tejo de Lisboa.

Carregado de Sonho, fundeou
Dentro da claridade destas grades...
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades...

Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre as gaivotas que se dão no rio.

Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro.

 

Miguel Torga

A CANÇÃO DAS PERDIDAS

dorna.jpg

 

A Vianna da Motta

I

Quem por amôr se perdeu
Não chore, não tenha pena.
Uma das santas do céu
- É Maria Magdalena...

 

II

Minha mãe foi o que eu sou.
Eu sou o que tantas são.
Que triste herança te dou,
Filha do meu coração!

 

III

Meu pae foi para o degredo
Era eu inda pequena.
Se não morresse tão cedo,
Morria agora – de pena...

 

IV

E ha no mundo quem afronte
Uma mulher quando cae!
Nasce agua limpa na fonte,
Quem a suja é quem lá vae...

 

V

Aquelle que me roubou
A virtude de donzella
Se outra honra lhe não dou,
-É porque só tive aquella!...

 

VI

Nós temos o mesmo fado,
Oh fonte d'agua cantante,
Quem te quer, pára um boccado.
Quem não quer, pássa adeante...

 

VII

O meu amôr, por amal-o,
Poz-me o peito numa chaga:
Deu-me facadas. Deixal-o.
Mas ao menos não me paga!

 

VIII

Nem toda a agua do mar
Por estes olhos chorada
Daria bem a mostrar
O que eu sou de desgraçada!

 

IX

Como querem vêr contente
Este paiz desgraçado,
Se dão só livros á gente
Nas escolas do peccado...

 

X

Dormia o meu coração
Cançado de fingimento.
Bateste-me, e vae então
Acordou nesse momento.

 

XI

Se aquillo que a gente sente,
Cá dentro, tivesse vóz,
Muita gente... toda a gente
Teria pena de nós!

 

Augusto Gil, Canto da Cigarra

(grafia da época; segundo a tradição ter-se-ia inspirado no chafariz da Dorna.)

O Amor, ...

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

 

Quem quer dizer o que sente

Não sabe o que há-de dizer.

Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

 

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!

 

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala
Fica só, inteiramente!

 

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

 

Fernando Pessoa.

Mascarada

mascara.jpg

 

 

É Carnaval, e estão as ruas cheias

De gente que conserva a sensação,

Tenho intenções, pensamento, ideias,

Mas não posso ter máscara nem pão.

 

Esta gente é igual, eu sou diverso —

Mesmo entre os poetas não me aceitariam.

Às vezes nem sequer ponho isto em verso —

E o que digo, eles nunca assim diriam.

 

Que pouca gente a muita gente aqui!

Estou cansado, com cérebro e cansaço.

Vejo isto, e fico, extremamente aqui

Sozinho com o tempo e com o espaço.

 

Detrás de máscaras nosso ser espreita,

Detrás de bocas um mistério acode

Que meus versos anódinos enjeita.

 

Sou maior ou menor? Com mãos e pés

E boca falo e mexo-me no mundo.

Hoje, que todos são máscaras, és

Um ser máscara-gestos, em tão fundo...

 

Álvaro de Campos

Uma declaração de amor

egito.jpg

(8 Abr 1920 / 29 Jan 2001)

 

Uma declaração de amor não é acontecimento de domínio público, uma

baleia que vara na praia sob o sol dos desastres e convoca multidões,

desalinhando hábitos quotidianos; uma declaração de amor é um acto de

grande intimidade que ergue um véu transparente de onde brotam mel e

pássaros azuis. As palavras directas ou indirectas, ditas ou escritas,

suscitam a carícia única, irrepetível, a leve percussão que desenha no

silêncio a imagem do que se ama. E assim terá de se guardar. Num lugar

seguro onde os sismos não possam encontrar o mapa do tesouro.

 

Egito Gonçalves