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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

António Correia de Oliveira

António Correia de Oliveira

(1879 – 1960)

 

Três modos de despedida
Tem o meu bem para mim:
- «Até logo»; «até à vista»:
Ou «adeus» – É sempre assim
.

 

     Nascido no ano a seguir a Afonso Lopes Vieira, em S. Pedro do Sul, este poeta foi contemporâneo do poeta de S. Pedro de Moel e conviveu com outro escritor dos fins do século XIX, Raul Brandão. Foi também neogarretista e pertenceu ao grupo do saudosismo de Teixeira de Pascoaes. Era presença assídua nos livros de leitura do estado novo pois os seus poemas eram de exaltação da pátria e da ideologia oficial, sendo considerado por alguns, poeta oficioso do regime. Quem estudou por essa altura recorda, com certeza, os seus poemas com conselhos explícitos aos jovens: “Ouve, meu filho, cheio de carinho, … “ ou “Olha, meu filho, …”. Trata-se pois de uma poesia de cariz popular e moralista.

     Como referido, nasceu no distrito de Viseu e frequentou o Seminário da mesma cidade tendo-o abandonado e, assim mesmo, os estudos. Deslocou-se para Lisboa onde, apesar dos breves estudos, colaborou em rápida passagem no Diário Ilustrado, tendo ingressado posteriormente na função pública. Depois do casamento com uma rica senhora do Minho, passou a viver nas proximidades de Esposende onde viria a falecer com 81 anos.

     Tendo publicado a primeira obra aos 16 anos, deixou-nos mais de uma trintena de livros em que predomina o metro de gosto popular e cuja característica mais saliente é a simplicidade e uma certa ingenuidade. Os seus poemas têm também um certo pendor narrativo, onde domina a exaltação da pátria. Devido à sua ligação ao regime dominante foi bastante esquecido e hoje mal se ouve falar dele. A sua obra é uma espécie de síntese das várias correntes poéticas da poesia finissecular e embora privilegie o saudosismo podem observar-se nos seus poemas o realismo à Guerra Junqueiro, o panteísmo saudosista à Pascoaes e o idealismo cristão. Aliás como era hábito e moda nessa altura, colaborou com muita frequência com as revistas literárias como, por exemplo, Águia, Atlântida, Ave Azul e Seara Nova. A sua obra mais conhecida é Verbo Ser e Verbo Amar.

     José Régio, o grande crítico literário do século XX, diz que foi “um cantor cheio de frescura e encanto, nas suas quadras e quintilhas em que a arte de Sá de Miranda se alia ao capricho da inspiração popular”. Outro grande crítico do século passado, Jacinto Prado Coelho, salienta na sua obra a capacidade de poetizar “os mistérios do Génesis e da Redenção.” O próprio Fernando Pessoa, nos textos críticos publicados na revista Águia, falou dos seus poemas, referindo-se a uma nova fase, com certeza aludindo à metafísica das Tentações de Sam Frei Gil e Alma Religiosa. O seu lirismo, haurido em sentimentos familiares e tradicionais e no apego à terra e à paisagem, não buscou nunca originalidade de forma. A sua aproximação dos temas populares ditou-lhe, a par de conceitos, moralidades e glosas, uma idealização dos costumes campestres, que umas vezes se eleva a síntese de grande beleza, outras roça pela vulgaridade. (João Pedro de Andrade)

     Foi tão apreciado na sua época que vinte dos seus colegas o propuseram, em 1933, para o Prémio Nobel da Literatura, sendo assim o primeiro escritor candidato ao galardão.

 

José Manuel Monteiro


Mãe

Olha, meu filho! quando, à aragem fria 
De algum torvo crepúsculo, encontrares 
Uma árvore velhinha, em modo e em ares 
De abandono e outonal melancolia, 

Não passes junto dela nesse dia 
E nessa hora de bênçãos, sem parares; 
Não vás, sem longamente a contemplares: 
Vida cansada, trémula e sombria! 

Já foi nova e floriu entre esplendores: 
Talvez em derredor, dos seus amores 
Inda haja filhos que lhe queiram bem... 

Ama-a, respeita-a, ampara-a na velhice; 
Sorri-lhe com bondade e com meiguice: 
— Lembre-te, ao vê-la, a tua própria Mãe! 

António Correira de Oliveira, in 'Antologia Poética' 

 

[Texto publicado no jornal "A GUarda", de 22.02.2018]

Aves, flores, saudades

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(1884 - 1968)

 

Sol a sol, desde a serra até ao mar,

Das pegas-rabilongas às gaivotas,

A orquestra alada, requintado as notas,

De nascente a poente é só tocar:

 

Ocarinas em fila – terras-cottas

Em beirais de telhado; à beira-mar,

Flautas de abibes; harpas de luar

Em garças ribeirinhas, nas marnotas;

 

Ao longo das ribeiras são as filas

Dos violinos – sílvias e fringilas –

Violetas, violas-trissonoras

 

E no alto do céu, flamas em jogo,

A regê-los, o Pássaro de Fogo

Peneira as grandes asas criadoras.

 

Emiliano da Costa, “Concerto ao ar livre”

Avizinhar-se do Silêncio

 

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Creio que é absolutamente urgente revisitarmos com outro apreço os territórios dos nossos silêncios e fazermos deles lugares de troca, de diálogos, de encontros. O silêncio é um instrumento de construção, é uma lente, uma alavanca. As nossas sociedades investem tanto na construção de competências na ordem da palavra (e pensemos como a escolarização está ao serviço da capacitação dos indivíduos em ordem a um funcionamento eficaz com a palavra) e tão pouco nas competências que operam com o silêncio! Somos analfabetos do silêncio e esse é um dos motivos por que não encontramos paz. O silêncio é um traço de união mais frequente do que se imagina, e mais fecundo do que se julga. O silêncio tem tudo para se tornar um saber partilhado sobre o essencial. Mas para isso precisamos de uma iniciação ao silêncio, que é o mesmo que dizer uma iniciação à arte de escutar. 
Numa cultura de avalanche como a nossa, a verdadeira escuta só pode configurar-se como uma re-signifícação do silêncio, um recuo crítico perante o frenesim das palavras e das mensagens que a todo o minuto pretendem aprisionar-nos. A arte da escuta é, por isso, um exercício necessário de resistência. 

José Tolentino Mendonça, O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas 

“O CANTOR”

 

As palavras faltaram
nos lábios emudecidos
da liberdade encarnada
numa guitarra plangente.

E por sobre notas secas
as cordas vibraram gritos
de revolta e libertação
de anseios reprimidos.

Mas nada pode calar
o grito intempestivo
da justiça agrilhoada
nas prisões mais hediondas.

Por isso um dia houve
em que as esperanças
tanto tempo incontidas
estalaram em alegria.

 

J M [23.02.1987]

Traz outro amigo também

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Amigo
Maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também

 

Em terras

Em todas as fronteiras
Seja bem-vindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também

 

Aqueles

Aqueles que ficaram
(Em toda a parte todo o mundo tem)
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também

 

José Afonso

AO LONGE OS BARCOS DE FLORES

 

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(1867 - 1926)
 
                              (A Ovídio de Alpoim)

Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranqüila,
- Perdida voz que de entre as mais se exila,
- Festões de som dissimulando a hora

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...
 
Camilo Pessanha

Os amigos

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Amigos cento e dez, e talvez mais, 
Eu já contei. Vaidades que eu sentia! 
Supus que sobre a terra não havia 
Mais ditoso mortal entre os mortais. 
 
Amigos cento e dez, tão serviçais, 
Tão zelosos das leis da cortesia, 
Que eu, já farto de os ver, me escapulia 
Às suas curvaturas vertebrais.
 
Um dia adoeci profundamente. 
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente 
Que não desfez os laços quase rotos.
 
 - Que vamos nós (diziam) lá fazer? 
Se ele está cego, não nos pode ver… 
Que cento e nove impávidos marotos!

Camilo Castelo Branco 

Quero a Fome de Calar-me

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Quero a fome de calar-me. O silêncio. Único 
Recado que repito para que me não esqueça. Pedra 
Que trago para sentar-me no banquete 

A única glória no mundo — ouvir-te. Ver 
Quando plantas a vinha, como abres 
A fonte, o curso caudaloso 
Da vergôntea — a sombra com que jorras do rochedo 

Quero o jorro da escrita verdadeira, a dolorosa 
Chaga do pastor 
Que abriu o redil no próprio corpo e sai 
Ao encontro da ovelha separada. Cerco 

Os sentidos que dispersam o rebanho. Estendo as direcções, estudo-lhes 
A flor — várias árvores cortadas 
Continuam a altear os pássaros. Os caminhos 
Seguem a linha do canivete nos troncos 

As mãos acima da cabeça adornam 
As águas nocturnas — pequenos 
Nenúfares celestes. As estrelas como as pinhas fechadas 

Caem — quero fechar-me e cair. O silêncio 
Alveolar expira — e eu 
Estendo-as sobre a mesa da aliança 

Daniel Faria

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