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Ontem na BMEL, foi a apresentação deste livro de Carlos Galinho Pires, meu antigo aluno. É muito gratificante para um Professor de Português assistir a publicações de alunos que enveredam pela escrita. É certo que são os autores os verdadeiros responsáveis pelos seus êxitos, mas, nestes tempos em que a classe é tão mal vista em termos sociais, é quase uma bênção haver gente que, embora tenha enveredado pelas engenharias, continua a gostar de escrever e reconhece o papel da escola na sua formação.
A cidade é um chão de palavras pisadas a palavra criança a palavra segredo. A cidade é um céu de palavras paradas a palavra distância e a palavra medo. A cidade é um saco um pulmão que respira pela palavra água pela palavra brisa A cidade é um poro um corpo que transpira pela palavra sangue pela palavra ira. A cidade tem praças de palavras abertas como estátuas mandadas apear. A cidade tem ruas de palavras desertas como jardins mandados arrancar. A palavra sarcasmo é uma rosa rubra. A palavra silêncio é uma rosa chá. Não há céu de palavras que a cidade não cubra não há rua de sons que a palavra não corra à procura da sombra de uma luz que não há. José Carlos Ary dos Santos
[Foto de Augusto Ferreira]
(1915 - 2012)
(1931 - 2007)
A maior parte das vezes não abre a janela:
senta-se no velho poial, como um resto de musgo,
e deixa que os olhos passem no vidro,
visitando-se mais uma vez. As coisas,
gradualmente, configuram-na, desde aquela hora,
e quem a procura, sentindo-a no fundo das águas,
não lhe pergunta pelo marido.
O relicário de pau-santo fere-lhe
a solidão de semente abolida,
já o arco de si própria.
Pudesse ao menos saber para onde irão varrer
o que ficar da sua sombra, quando vender a quinta.
Para junto dos limoeiros, sonha.
enquanto a alma escorrega, docemente.
António Cabral
(1920 - 1982)
Outros serão
os poetas da força e da ousadia.
Para mim
— ficará a delicadeza dos instantes que fogem
a inutilidade das lágrimas que rolam
a alegria sem motivo duma manhã de sol
o encantamento das tardes mornas
a calma dos beijos longos.
(Um ócio grande. Morre tudo
dum morrer suave e brando...)
Que os outros fiquem com o seu fel
as suas imprecações
o seu sarcasmo.
Para mim
será esta melancolia mansa que me é dada pela certeza de saber
que a culpa é sempre minha
se as lágrimas correm ...
João José Cochofel
(1907 - 1949)
Sempre que leio nos jornais:
«De casa de seus pais desapar’ceu...»
Embora sejam outros os sinais,
Suponho sempre que sou eu.
Eu, verdadeiramente jovem,
Que por caminhos meus e naturais,
Do meu veleiro, que ora os outros movem,
Pudesse ser o próprio arrais.
Eu, que tentasse errado norte;
Vencido, embora, por contrário vento,
Mas desprezasse, consciente e forte,
O porto do arrependimento.
Eu, que pudesse, enfim, ser eu!
- Livre o instinto, em vez de coagido.
«De casa de seus pais desapar’ceu...»
Eu, o feliz desaparecido!
Carlos Queirós, Desaparecido e Outros Poemas
Sou o dos desesperos enfadados.
Há na minh’ alma hortências a fluir.
Se eu pudesse deixar os meus cuidados
Ia-me repousar, ia dormir!
Pressentem-se na luz uns flébeis fados
Como coisa que em breve vai cair…
Eu sinto a dor dos ser’s inanimados.
Eu sinto tudo o que quiser sentir!
Esta sede sem fim de analisar
Acaba sempre em pré-neurastenia.
- Não mais me comover! Não mais pensar!
Fechar os olhos, sem força, parar…
- Que bom viver um sono de água fria,
Com a alma meia morta, a desfocar...
Cristovam Pavia