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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Pausa

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Um dia é preciso parar,

a vida exige uma pausa.

 

O silêncio sabe-nos bem. Olhar

para trás e saber a causa,

inventariar o tempo. Esperar.

 

Esperar o quê? Tanta coisa:

às vezes o que merecemos

outras vezes o que não queremos;

às vezes o que desejamos

outras vezes o que evitamos;

às vezes a alegria

outras a acre azia; …

 

 E quem melhor que a noite,

secretária de meus cansaços,

que nos silêncio nos acoite

no aconchego dos seus braços?

 

Há dias em que temos de parar!

 

J M

 

Esperança

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Tantas formas revestes, e nenhuma
Me satisfaz!
Vens às vezes no amor, e quase te acredito.
Mas todo o amor é um grito
Desesperado
Que apenas ouve o eco...
Peco
Por absurdo humano:
Quero não sei que cálice profano
Cheio de um vinho herético e sagrado.   

Miguel Torga, in 'Penas do Purgatório'

Convalescença

Hora a hora,
Nasce outra vez em mim a vida.
Devagar,
Como um gomo de vide a rebentar,
Cobre de verde a cepa ressequida.

É um fruto que acena?

É uma flor que há-de ser?
-Fui eu que disse que valia a pena
Viver!
 
Miguel Torga

O Espírito

Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:

Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.

Natália Correia, in “Poesia Completa”
 

[Nada a fazer! Memorizações mandam.]

Miséria

arcadas.jpg

[Foto de Carlos Adaixo]

 

 

Era já noite cerrada,
Diz o filho: "Oh minha mãe,
Debaixo d'aquela arcada
Passava-se a noite bem!"

A cega, que todo o dia
Tinha levado a andar,
A tais palavras do guia
Sentiu-se reanimar.

Mas saltam dois cães de gado,
Que eram como dois leões:
Tinha-os à porta o morgado
Para o guardar dos ladrões.

Tornam os pobres à estrada,
E aonde haviam de ir dar?
Ao palácio da tapada
Onde el-rei ia caçar.

À ceguinha meia morta
Torna o filho: "Oh minha mãe,
Ali no vão de uma porta
Passava-se a noite bem!"

- Se os cães deixarem... (diz ela,
A triste n'um riso amargo),
Com efeito a sentinela:
- "Quem vem lá?... Passe de largo!"

Então ceguinha e filhinho,
Vendo a sua esperança vã,
Deitaram-se no caminho
Até romper a manhã!...


João de Deus

Os olhos das casas

praça velha - Adaixo.jpg

Os olhos das casas
espreitavam a praça deserta
e no lajedo do chão
as sombras esperavam uma aberta
para se apoderarem dela
 
mas ao fundo na janela
resvés com as pedras
uma labareda vigiando
esperava o momento de atacar
o resto de luz
 
e atento D. Sancho
a mão nervosa na espada
olha em ânsias a Rua Direita
tentando vislumbrar
a esbelta Ribeirinha

 

 

J M 05.04.2017

 

[Foto de Carlos Adaixo]