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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

30 anos! (2)

O pintor morreu

envolto em rosas de maio,

olhando os meninos do Bairro Negro,

cantando os cravos rubros

de um abril florido.

 

Em Grândola poeta-libertador,

dum povo adormecido,

na longa noite de 33;

em abril soldado em flor

que desabrochou a 24,

numa manhã ingente e fresca

florida em liberdade.

 

Na noite, cantor-maldito

de vampiros e eunucos

cuja voz rompeu os tímpanos

de absurdos assombros:

Peniche, Caxias, Tarrafal.

 

Em Coimbra, amigo do vento

levado do Choupal à Lapa

nas brisas ternas dos sonhos

até aos filhos da madrugada.

 

Em Portugal poeta-músico

cujo machado não corta

a enraizada lembrança

gravada a palavras-fogo

no peito da nossa memória.

 

E se alguém se enganou

com seu olhar modesto

verá correr as águas claras

dos mananciais da música

que guardam perenemente

a timbrada voz universal

de abril-liberdade!

 

J M (23.02.1987)

Promessas

Caminho na luz débil do entardecer

ao longo da praia do teu corpo;

no horizonte ouvem-se a descer

as pregas do teu silêncio. Porto

 

de abrigo, o teu aroma perfumado

rescende à seiva da terra ávida

no pousio de um inverno gelado

preparando o renascer de calma vida.

 

Rebentos, as tuas mãos remetem

às colheitas fartas lá para setembro;

agora, vejo teu perfil estampado

 

no início de nova criação e lembro

as primaveras havidas no passado.

As curvas dos beijos tanto prometem!

 

J M - 19.02.2017

GOETHE 1

“Na verdade, de dia para dia vou notando, meu caro, como se é insensato ao avaliar os outros por nós próprios. E porque já tenho bastante trabalho comigo mesmo e este coração é turbulento que chegue – oh! de bom grado deixo os outros seguirem o seu caminho, assim me deixassem também seguir o meu.”

J W Goethe, A paixão do jovem Werther, Bertrand

GOETHE

“Que bom é o meu coração ser capaz de sentir o prazer simples e inocente do homem que traz para a mesa a couve que ele próprio cultivou. Mas não é só a couve; ele é capaz de voltar a gozar, num único momento, os dias, a bela manhã em que a semeou, as tardes amenas em que a regou e se comprazia em vê-la ir crescendo sempre.”

 

J W Göthe, A paixão do jovem Werther, Bertrand

A Nossa Maior Crueldade é o Tempo

A nossa maior crueldade é o tempo. Como um fabricante de armadilhas desajeitado que acaba sempre prisioneiro das engrenagens que produz, também nós inventamos o tempo e nunca temos tempo. Os nossos relógios nunca dormem. Quantas vezes o tempo é a nossa desculpa para desinvestir da vida, para perpetuar o desencontro que mantemos com ela? Como não temos diante de nós os séculos, renunciamos à audácia de viver plenamente o breve instante. A imagem de crono, devorando aquilo que gera, obsidia-nos. O tempo consome-nos sem nos encaminhar verdadeiramente para a consumação da promessa. Nesse sentido, o consumo desenfreado não é outra coisa que uma bolsa de compensações. As coisas que se adquirem são naquele momento, obviamente, mais do que coisas: são promessas que nos acenam, são protestos impotentes por uma existência que não nos satisfaz, são ficções do nosso teatro interno, são uma corrida contra o tempo. A verdade é que precisamos reconciliar-nos com o tempo. Não nos basta um conceito de tempo linear, ininterrupto, mecanizado, puramente histórico. O continuum homogéneo do tempo que a teoria do progresso desenha não conhece a rutura trazida pela novidade surpreendente. E a redenção é essa novidade. Precisamos identificar uma dupla significação no instante presente. O presente pode ser uma passagem horizontal, quantitativa, na perspetiva de uma realização entre este instante e o que lhe sucede. Mas o presente tem também um sentido vertical que requalifica o tempo, abrindo-o à eternidade. É o tempo qualitativo, epifânico.

José Tolentino Mendonça, in 'A Mística do Instante'

A poesia quer-se a horas decentes

                                                  para o Luís Filipe Cristóvão

 

Éramos os últimos

no café quando decidimos

regressar.

 

Os nossos passos — trocados

pela hora a mais que a lei do tempo

impõe — percorreram as ruas

desertas, onde a qualquer momento

esperei ver um coiote

atravessar-se no caminho,

não perguntes porquê.

 

No hotel entrámos a rir,

a falar alto.

 

Evocávamos sem saber

as ninfas desse rio Tago

cujo nome soa melhor

em português.

 

Até que alguém apareceu

e pediu silêncio.

 

Por qualquer motivo tínhamos esquecido

que a poesia quer-se

a horas decentes.

 

manuel a. domingos, em Sulscrito, Revista de Literatura, nº 2, Faro: ARCA – Associação Recreativa e Cultural do Algarve, 2008, p. 12.

ORLA MARÍTIMA


O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo das avenidas
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
«Mudança possui tudo»? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios de vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
Gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida

Ruy Belo

Algumas Proposições com Crianças

A criança está completamente imersa na infância
a criança não sabe que há-de fazer da infância
a criança coincide com a infância
a criança deixa-se invadir pela infância como pelo sono
deixa cair a cabeça e voga na infância
a criança mergulha na infância como no mar
a infância é o elemento da criança como a água
é o elemento próprio do peixe
a criança não sabe que pertence à terra
a sabedoria da criança é não saber que morre
a criança morre na adolescência
Se foste criança diz-me a cor do teu país
Eu te digo que o meu era da cor do bibe
e tinha o tamanho de um pau de giz
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez
Ainda hoje trago os cheiros no nariz
Senhor que a minha vida seja permitir a infância
embora nunca mais eu saiba como ela se diz

Ruy Belo, in 'Homem de Palavra[s]'

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