“Na verdade, de dia para dia vou notando, meu caro, como se é insensato ao avaliar os outros por nós próprios. E porque já tenho bastante trabalho comigo mesmo e este coração é turbulento que chegue – oh! de bom grado deixo os outros seguirem o seu caminho, assim me deixassem também seguir o meu.”
“Que bom é o meu coração ser capaz de sentir o prazer simples e inocente do homem que traz para a mesa a couve que ele próprio cultivou. Mas não é só a couve; ele é capaz de voltar a gozar, num único momento, os dias, a bela manhã em que a semeou, as tardes amenas em que a regou e se comprazia em vê-la ir crescendo sempre.”
A nossa maior crueldade é o tempo. Como um fabricante de armadilhas desajeitado que acaba sempre prisioneiro das engrenagens que produz, também nós inventamos o tempo e nunca temos tempo. Os nossos relógios nunca dormem. Quantas vezes o tempo é a nossa desculpa para desinvestir da vida, para perpetuar o desencontro que mantemos com ela? Como não temos diante de nós os séculos, renunciamos à audácia de viver plenamente o breve instante. A imagem de crono, devorando aquilo que gera, obsidia-nos. O tempo consome-nos sem nos encaminhar verdadeiramente para a consumação da promessa. Nesse sentido, o consumo desenfreado não é outra coisa que uma bolsa de compensações. As coisas que se adquirem são naquele momento, obviamente, mais do que coisas: são promessas que nos acenam, são protestos impotentes por uma existência que não nos satisfaz, são ficções do nosso teatro interno, são uma corrida contra o tempo. A verdade é que precisamos reconciliar-nos com o tempo. Não nos basta um conceito de tempo linear, ininterrupto, mecanizado, puramente histórico. O continuum homogéneo do tempo que a teoria do progresso desenha não conhece a rutura trazida pela novidade surpreendente. E a redenção é essa novidade. Precisamos identificar uma dupla significação no instante presente. O presente pode ser uma passagem horizontal, quantitativa, na perspetiva de uma realização entre este instante e o que lhe sucede. Mas o presente tem também um sentido vertical que requalifica o tempo, abrindo-o à eternidade. É o tempo qualitativo, epifânico.
José Tolentino Mendonça, in 'A Mística do Instante'
O tempo das suaves raparigas é junto ao mar ao longo das avenidas ao sol dos solitários dias de dezembro Tudo ali pára como nas fotografias É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar És tu surges de branco pela rua antigamente noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher (E nos alpes o cansado humanista canta alegremente) «Mudança possui tudo»? Nada muda nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas Deus anda à beira de água calça arregaçada como um homem se deita como um homem se levanta Somos crianças feitas para grandes férias pássaros pedradas de calor atiradas ao frio em redor pássaros compêndios de vida e morte resumida agasalhada em asas Ali fica o retrato destes dias Gestos e pensamentos tudo fixo Manhã dos outros não nossa manhã pagão solar de uma alegria calma De terra vem a água e da água a alma o tempo é a maré que leva e traz o mar às praias onde eternamente somos Sabemos agora em que medida merecemos a vida
A criança está completamente imersa na infância a criança não sabe que há-de fazer da infância a criança coincide com a infância a criança deixa-se invadir pela infância como pelo sono deixa cair a cabeça e voga na infância a criança mergulha na infância como no mar a infância é o elemento da criança como a água é o elemento próprio do peixe a criança não sabe que pertence à terra a sabedoria da criança é não saber que morre a criança morre na adolescência Se foste criança diz-me a cor do teu país Eu te digo que o meu era da cor do bibe e tinha o tamanho de um pau de giz Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez Ainda hoje trago os cheiros no nariz Senhor que a minha vida seja permitir a infância embora nunca mais eu saiba como ela se diz