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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Rosto

Como gotas de ouro transparente

as lágrimas caem dos meus olhos:

uma após outra e outra ainda.

Em cada uma delas há mil recordações

um rosto e uma saudade!

Caprichosamente juntas formam uma vida

uma desilusão, um amor … perdido.

 

A chuva intensa bate furiosamente nos vidros

e as lágrimas do meu rosário sem fim

caem lenta e silenciosamente

na folha branca da escrita.

 

(De tudo apenas resta

uma mancha indistinta.

 

Do teu rosto também apenas resta

uma mancha na minha imaginação.)

 

J M

(Recuperado do fundo da gaveta)

Diária

Há perfumes matutinos

no ar fresco da manhã

há chilreios e há trinos

na voz dos passarinhos

bela, alegre e louçã.

 

Traz gravada, lá no fundo,

a beleza de dias de primavera,

os sonhos de um sono profundo

com alguns desejos imersos

no começo de uma nova era.

Aprendiz de feiticeiro

Lancei as palavras ao papel

num sentido horizontal

mas ficou desorganizado

o texto piramidal.

 

A montanha pariu um rato,

as palavras ficaram soltas,

o sentido nem apareceu

nas folhas das árvores revoltas.

 

Acariciei a semântica,

sobraram erros de sintaxe,

das orações confundidas

fugiu inclusive a “praxe”.

 

Já figurinhas de estilo

nem cheirá-las, nem vê-las.

Pobrezinho do escriba!

E sonhava ele estrelas!

 

J M

Teus olhos ...

Há nos teus olhos um mar de ternura

que esparges sobre mim

em cada hora que o dia nos traz;

 

As suas ondas submergem-me

num banho louco de magias e consolações

e as marés, alternando,

enlanguescem-me,

levando-me para mundos irreais,

para sonhos encantadores e magos

onde os teus se irmanam aos meus.

 

Aí, tudo desaba em turbilhões

e voamos por mundos feéricos

de luz e de cor

em aventuras paranoicas

de paixões e desvelos,

amores e devaneios,

impossíveis, inenarráveis.

 

As histórias que os teus olhos me contam!

 

J M

Tempo

tempo.jpg

 

O tempo foge-me inutilmente,

Escoa-se. Escorre. Gasta-se.

 

Deixá-lo …

 

Engana-se, pensando que me leva

na voragem contínua dos instantes!

 

Puro engano!...

 

Sou quem sou.

Vivo cada instante

como se fosse o próximo,

como se fosse o último.

 

Mas … o tempo é todo meu.

 

J M

Spes*

A noite ri pálida e transparente

por trás de uma vidraça de loucuras

onde os anjos brincam de crianças

e os homens de tristezas e venturas.

 

O lume das estrelas cai oblíquo

na praça das canções por inventar

e, nas ruas da cidade, o orvalho

escorre entre as gotas do luar.

 

O sonho das crianças surge ingente

no ar límpido da madrugada

e sente-se pairar um quase-tudo

onde a noite nasce já realizada.

 

Um novo dia, nova primavera,

aprimora-se forte no alvorecer

e se as promessas não forem vãs

o mundo vai voltar a amanhecer.

 

J M

* esperança

E quê?

“ - É simples, é bela, é pura,

é a mais santa criatura

que entrou na minha vida.

 

Ela é a minha loucura,

na dor e na ventura

é-me igualmente querida.”

 

“ – Quem é ? – quiseste saber,

mas eu não quis dizer

porque é só meu o segredo.

 

“ – É trigueira, é morena?”

“ – Não, não é!” “ – Pois é pena,

 - respondeste quase a medo –

 

porque se fosse morena

ou da cor da açucena

seria muito melhor.”

 

“ – Não te dê isso cuidado. –

respondi – pois, com ela ao lado,

fica-se moreno de amor.”

 

J M

(brincadeiras do passado)

Gládio!

 Momentos críticos, horas amargas

há sempre na vida de qualquer ser,

mesmo quando nos ferem as ilhargas

precisamos ter força para vencer.

 

Homens, mulheres – que importa? – pessoas

(bem no fundo somos todos iguais!)

umas vezes más, outras vezes boas,

umas vezes simpáticas, outras infernais.

 

Encara de frente a vida. Ergue-te! Luta!

Sê forte, animoso e terás a vitória …

Dos tristes e fracos não reza a história!

 

E, se no mais aceso da disputa,

fraquejar, vacilando, tua conduta,

continua, persiste e verás a glória!

 

J M

In memoriam - Eugénio de Andrade

 

eugenio.jpg

 

Em Eugénio

            vi as planícies imensas,

            as fileiras de mulheres de negro vestidas,

            a lama repleta de clássica beleza,

            a poesia vestida de luz e de certeza.

 

De Eugénio

            revisitei as mãos envoltas em frutos,

            os silêncios desembocados na foz dos afluentes,

            os dinheiros que os amantes não tinham,

            o rosto precário de uma prosa poética,

            e o ostinato rigore dos seus versos.

 

Com Eugénio

            ainda vou da Póvoa até à Foz,

            ainda faço da palavra o meu lema,

            ainda ouço a sua límpida e clara voz,

            ainda me renovo no fabuloso do poema.

 J. M.

Dias

Aponta a hora final,

O horizonte oblíquo da vida;

Raiando surge a manhã

Acima da matéria definida.

 

Os limites são de espaço concreto

Na imaginação oca de sentido

E as partes loucas de nós

Trazem a ilusão de um ócio vivido.

 

Criação de mim para mim

Parte integrante de nós,

Sublimites de um rio sem foz

Abstração de meta sem fim.

 

Loucura … onde existe?

Sai às vezes, por engano, um chiste

De inteligência baça e banal

E nas folhas das flores dos fenos

Passa voando o vento veloz.

 

Dispersos na pressa louçã

Corremos cortando a vida

Suportamos o sussurro nas sebes

E a amargura mágica da manhã.

 

…………………………..

 

Magia esfarrapada no sol

Do dia que a meio vai

Borboleta morta no arrebol

Que no chão desfeita cai.

 

J M 

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