Lembro-me agora que tenho de marcar um encontro contigo, num sítio em que ambos nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma das ocorrências da vida venha interferir no que temos para nos dizer. Muitas vezes me lembrei de que esse sítio podia ser, até, um lugar sem nada de especial, como um canto de café, em frente de um espelho que poderia servir de pretexto para reflectir a alma, a impressão da tarde, o último estertor do dia antes de nos despedirmos, quando é preciso encontrar uma fórmula que disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É que o amor nem sempre é uma palavra de uso, aquela que permite a passagem à comunicação ; mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale, de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio ser, como se uma troca de almas fosse possível neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde, isto é, a porta tinha-se fechado até outro dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que é também a mais absurda, de um sentimento; e, por trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas, que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.
Não se perdeu nenhuma coisa em mim. Continuam as noites e os poentes Que escorreram na casa e no jardim, Continuam as vozes diferentes Que intactas no meu ser estão suspensas. Trago o terror e trago a claridade, E através de todas as presenças Caminho para a única unidade.
Um dia, lendo este poema, lembrar-te-ás: o amor falou através dele. Ouvirás no seu ritmo a voz que tantas vezes desejaste; reconhecerás nos seus versos o corpo que encheu a tua vida; tocarás em cada uma das suas palavras os dedos que te ensinaram a medir os dias pelas suas contas de ternura. E o tempo entrará por ti como esse rio que alagou os campos do inverno. Olharás à tua volta, vendo a desolação de uma paisagem inundada. Algures, porém, uma árvore antiga sobressai; e os seus ramos verdes dar-te-ão a esperança de uma nova primavera, em que voltes a ouvir a voz que o poema te trouxe com os seus dedos de música.
José Manuel Monteiro apresentou hoje, às 14h30, na ESAAG (na Biblioteca Escolar Vergílio Ferreira), o seu livro publicado pelas Câmaras da Guarda e do Sabugal: “Nuno de Montemor – alma brava, meiga”, dentro da coleção GENTES DA GUARDA. Esteve presente a representar a Câmara da Guarda Alexandra Isidro, Chefe de Divisão da Cultura, tendo cabido a António Morgado, ex-professor e ex-diretor da ESAAG, a análise da obra e a integração no percurso biográfico de Nuno de Montemor, pseudónimo do Padre Joaquim Álvares de Almeida, nomeadamente na sua relação com a cidade da Guarda. Finalizou a apresentação o autor da obra, José Manuel Monteiro, explicando as suas perspetivas de análise e os condicionalismos da edição. (Fotos Ana Margarida Neves e Francisco Robalo)
"Demoro-me neste país indeciso que ainda procura o amor no fundo dos relógios, que se abre como se abrisse os poros solitários para que neles caiam ossos, vidros, pão. Demoro-me no ventre desta cidade que nenhum navio abandonou porque lhe faltou a água para a partida, como por vezes desaparece a estrada que nos conduz aos lugares e ali temos que ficar."
Hoje acordei com a dor das árvores; estou de pé e o meu tronco sustém o vazio e a solidão dos ramos côncavos de espera, impacientes de ternura. Quero o bracejar dos pássaros, ser refúgio dos ventos que me procuram, tornar-me na folhagem que te abriga, ser o ninho na tua noite, aberto com a inquietação e a serenidade dos rumores das aves mais tardias. Não, desta vez não vou ...