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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

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"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Impressões de leitura - Aparição

     O milagre da vida, o absurdo da morte, o facto extraordinário de estar vivo, são os temas-base deste magnífico romance vergiliano que nos leva pelos labirintos interiores da descoberta de nós próprios, na linha do existencialismo europeu do pós-guerra. O autor atrai-nos para esta introspeção, recorrendo a uma bela prosa poética.

     “Sento-me nesta sala vazia e relembro.” Assim começa e assim termina esta narrativa circular indiciando o ciclo da vida. Perante a inquietação do ser humano, colocado num mundo adverso e ganhando consciência, ao saber-se condenado à morte, vai tentando encontrar respostas para essas mesmas inquietações. No fim, já senhor de um certo apaziguamento existencial, aceita o que a vida lhe proporcionou não sem deixar de se preocupar com a presença constante da morte ao seu lado.

     A narrativa decorre em dois espaços chave: a montanha, virada para a neve e para a lua, anunciando a prioridade da revelação e da aparição de si a si mesmo, e a planície onde está sentada a cidade branca que retém em si a memória dos séculos, a memória de origens. E neles vamos recuperando as experiências pessoais não só das personagens, mas também as nossas. Daí a permanente importância daquilo que é narrado: entramos na história e recordamos as nossas próprias experiências. Do mastigar das palavras, do reflexo no espelho, das mortes dos seres queridos, da incapacidade de nos conhecermos na totalidade e da respetiva angústia existencial. Por isso vivemos nas personagens, pensamos com elas, experienciamos através delas.

     E as personagens completam-se e completam-nos. Em Évora, encontramos três irmãs que entretecem as suas vivências, por isso apenas uma sobrevive e consegue atingir a respetiva acalmia. Cristina encarna a inocência na projeção da sua música instrumental que apazigua; Sofia projeta-se no canto, na sua bela voz de contralto que, na sua rebeldia, nos transporta para o que é a essência do ser pensante; Ana espelha-se nas palavras: através delas vai conseguir o apaziguamento final. A inocência de Cristina não era deste mundo; a rebeldia de Sofia era incompatível com este mundo; só a idealização de Ana, realizada na maternidade por adoção, já que era estéril, consegue subsistir neste mundo adverso à condição natural do ser humano pensante e atuante.

    Há outras obras de Vergílio Ferreira, talvez mais perfeitas em termos narrativos, talvez mais interessantes a nível temático, mas, para mim, Aparição é o romance mais atrativo e mais completo da sua obra romanesca. A obra é de 1959 e valeu ao autor o seu primeiro prémio literário, em 1960, da Sociedade Portuguesa de Escritores. Outros mais viriam posteriormente.

 

José Manuel Monteiro, Blogue Expressão, 23.02.2016

[http://blogueexpressao.blogspot.pt/2016/02/vergilio-ferreira-impressoes-de-leitura_23.html]