Tenho uma grande constipação, E toda a gente sabe como as grandes constipações Alteram todo o sistema do universo, Zangam-nos contra a vida, E fazem espirrar até à metafísica. Tenho o dia perdido cheio de me assoar. Dói-me a cabeça indistintamente. Triste condição para um poeta menor! Hoje sou verdadeiramente um poeta menor. O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.
Adeus para sempre, rainha das fadas! As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando. Não estarei bem se não me deitar na cama. Nunca estive bem senão deitando-me no universo.
Excusez un peu... Que grande constipação física! Preciso de verdade e da aspirina.
Álvaro de Campos, in "Poemas" Heterónimo de Fernando Pessoa
“Sento-me nesta sala vazia e relembro.” Assim começa e acaba a narrativa circular desse romance marcante na obra de Vergílio Ferreira: a Aparição. É, para mim, o seu romance mais atrativo e mais perfeito na meditação sobre o ser humano. Outros há mais expressivos de toda a sua escrita. Uma das temáticas gratas ao autor é o simbolismo que imprime à presença da música. Releio: “Oiço o Nocturno nº 20, de Chopin e recordo-te, Cristina, na tua mágica aparição: tocavas Chopin esforçando-te por chegar aos pedais do piano, mas isso não perturbava a tua fantástica personagem. “Toca, Cristina; Cristina, toca”. Assim se resume foneticamente a tua aparição em Aparição. E vemos-te na tua ingenuidade de 7 anos, madura na tua interpretação, presságio do teu destino trágico. E o simbolismo do teu nome: a sua relação com Cristo. Daí o Nocturno. (E de ver assim presente a uma inocência o mundo do prodígio e da grandeza, de ver que uma criança era bastante para erguer o mundo nas mãos. cap. III) E cais tragicamente numa curva da estrada, regressando do carnaval no Redondo. Porquê? Para expiar os pecados dos outros? Para seres uma revelação do eu inocente e pleno na tua perfeição da música? Porque afinal a música era a tua motivação para existires. Por isso continuavas a tocar depois de morta nas dobras do lençol. E assim cumpriste a tua missão: apareceste, tocaste a tua música e deslumbraste! E depois surges tu, Sofia! Irmã na vida e na música. Mas, Sofia, tu não tocavas! Pois não, cantavas: tinhas uma voz de contralto deslumbrante (Porque o canto não era nela senão o anúncio de que estava viva, de que estava presente na terra. cap. III) e cantavas maravilhosamente bem. Eras a sabedoria rebelde. Eras a demonstração de que o eu se assumia em plenitude. Eras o milagre da vida exposto perante o cantar da Beira Baixa, nascido da terra, do fundo dos tempos, de uma memória de origens. (Era um cantar da Beira Baixa, escuro, antiquíssimo ou com um sabor a isso, ali, na grande noite lunar. cap. XXIII) E assim prenuncias a tua trágica morte, necessária para explicar a grandeza e o milagre da vida. Por fim, a completar o trio da perfeição feminina, discretamente, apareces tu, Ana. Onde está a tua música? A tua harmonia está na harmonia das palavras. Tu pensas, Ana! Tu tens a ousadia de enfrentar o profeta e mostrar que a mensagem pode ser lida noutro sentido. Mas primeiro fazes o caminho da busca, procuras a resposta nas palavras evangélicas de Alberto! E descobres a fragilidade das palavras que o Carolino conta na sua experiência de as mastigar. Afinal, as palavras podem harmonizar-se desde que a harmonia venha do interior. Daí teres, Ana, a irregularidade de um dente: és humana, não fora essa irregularidade, serias perfeita. Tu descobres, na grandeza da tua irmã Cristina, na estranha cumplicidade, a maravilhosa realização da vida. E és, assim, a síntese da feminilidade, a realização do milagre da vida, não no sentido daquilo que o Alberto pregava, mas na realização de uma missão que assumiste como tua: ser mãe!”
De referir que este trio de personagens femininas completam aquilo que poderíamos considerar um desmembramento de uma personagem só: o eterno feminino. Na inocência de Cristina, na rebeldia de Sofia e na inquietação de Ana, temos representadas três facetas do mundo da mulher. A criança, a adolescente e a mulher que quer ser mãe completam-se. Isto tudo se passa no espaço da planície, da horizontalidade que é Évora. No outro espaço da obra, a Beira, onde domina a montanha e a presença da Lua é constante, temos o trio masculino constituído pelo narrador, Alberto Soares, e seus irmãos Evaristo e Tomás. Se o Evaristo não tem um simbolismo relevante na economia da narrativa, já Alberto e Tomás têm bastante peso. (Mas isso levar-nos-ia longe e pode ficar para outra reflexão.) O milagre da vida, o absurdo da morte, o facto extraordinário de estar vivo, são os temas base deste magnífico romance vergiliano que nos leva pelos percursos interiores da descoberta de nós próprios, na linha do existencialismo europeu do pós-guerra. O autor atrai-nos para esta introspeção, recorrendo a uma bela prosa poética. A obra é de 1959 e valeu ao autor o seu primeiro prémio literário, em 1960, da Sociedade Portuguesa de Escritores. Outros viriam posteriormente. Termino relembrando que, no próximo dia 1 de Março, passam vinte anos sobre a morte de Vergílio Ferreira.
José Manuel Monteiro
[Texto publicado na edição de hoje do jornal A Guarda]
O milagre da vida, o absurdo da morte, o facto extraordinário de estar vivo, são os temas-base deste magnífico romance vergiliano que nos leva pelos labirintos interiores da descoberta de nós próprios, na linha do existencialismo europeu do pós-guerra. O autor atrai-nos para esta introspeção, recorrendo a uma bela prosa poética.
“Sento-me nesta sala vazia e relembro.” Assim começa e assim termina esta narrativa circular indiciando o ciclo da vida. Perante a inquietação do ser humano, colocado num mundo adverso e ganhando consciência, ao saber-se condenado à morte, vai tentando encontrar respostas para essas mesmas inquietações. No fim, já senhor de um certo apaziguamento existencial, aceita o que a vida lhe proporcionou não sem deixar de se preocupar com a presença constante da morte ao seu lado.
A narrativa decorre em dois espaços chave: a montanha, virada para a neve e para a lua, anunciando a prioridade da revelação e da aparição de si a si mesmo, e a planície onde está sentada a cidade branca que retém em si a memória dos séculos, a memória de origens. E neles vamos recuperando as experiências pessoais não só das personagens, mas também as nossas. Daí a permanente importância daquilo que é narrado: entramos na história e recordamos as nossas próprias experiências. Do mastigar das palavras, do reflexo no espelho, das mortes dos seres queridos, da incapacidade de nos conhecermos na totalidade e da respetiva angústia existencial. Por isso vivemos nas personagens, pensamos com elas, experienciamos através delas.
E as personagens completam-se e completam-nos. Em Évora, encontramos três irmãs que entretecem as suas vivências, por isso apenas uma sobrevive e consegue atingir a respetiva acalmia. Cristina encarna a inocência na projeção da sua música instrumental que apazigua; Sofia projeta-se no canto, na sua bela voz de contralto que, na sua rebeldia, nos transporta para o que é a essência do ser pensante; Ana espelha-se nas palavras: através delas vai conseguir o apaziguamento final. A inocência de Cristina não era deste mundo; a rebeldia de Sofia era incompatível com este mundo; só a idealização de Ana, realizada na maternidade por adoção, já que era estéril, consegue subsistir neste mundo adverso à condição natural do ser humano pensante e atuante.
Há outras obras de Vergílio Ferreira, talvez mais perfeitas em termos narrativos, talvez mais interessantes a nível temático, mas, para mim, Aparição é o romance mais atrativo e mais completo da sua obra romanesca. A obra é de 1959 e valeu ao autor o seu primeiro prémio literário, em 1960, da Sociedade Portuguesa de Escritores. Outros mais viriam posteriormente.
José Manuel Monteiro, Blogue Expressão, 23.02.2016
A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.
E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.
Pois é assim: a minha Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.
Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o "Matin" de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:
Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.
Folhetim da "Capital"
Pelo nosso Júlio Dantas ---
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual...
O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!...
Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra a porta aberta...
Isto assim não pode ser...
Mas como achar um remédio?
- Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:
O que era fácil - partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel
A gritar "Viva a Alemanha"...
Mas a minha Alma, em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade...
Vou deixá-la - decidido -
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um fim mais raffiné.
Um pouco mais de sol - eu era brasa.
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Nm baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar....
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
.........................................
.........................................
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Que rosas fugitivas foste ali:
Requeriam-te os tapetes – e vieste...
– Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.
Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste –
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi...
Pensei que fosse o meu o teu cansaço –
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava...
E fugiste... Que importa ? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?...
Paris - dezembro 1915
Na minha Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar -
Balouço à beira dum poço,
Bem difícil de montar...
- E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar...
Se a corda se parte um dia
(E já vai estando esgarçada),
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada...
- Cá por mim não mudo a corda,
Seria grande estopada...
Se o indez morre, deixá-lo...
Mais vale morrer de bibe
Que de casaca... Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive...
- Mudar a corda era fácil...
Tal ideia nunca tive...
Mário de Sá-Carneiro