Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Vergílio Ferreira 31 - (1916-2016)

"Que ridículo e mesmo estúpido dizer-se de um livro que está bem escrito. Não é «bem escrito» que está. Está é sentido originalmente, original nas observações, inteligente na reflexão. É por isso que não se pode imitar. Pode-se é ser original de outra maneira. Há realmente livros que são apenas «bem escritos». São os livros banais, com palavras trabalhadas ao torno, frases que se pretendem «despojadas», reduzidas ao «essencial», e cruas. (...) O que nos fica de um livro «bem escrito» é essa emoção que já não lembra as palavras e vive por si.
Eis porque tal livro é inimitável e apenas poderá repetir-se, ou seja plagiar-se. Imitar verdadeiramente esse livro é recompor uma emoção afim e inventar outras palavras que traduzam esse sentir, ou seja que lhe sirvam de pretexto ou estratagema para que esse sentir (e pensar/sentir) se realize como a música nas cordas de um instrumento. O escritor medíocre imagina que todo o seu trabalho deve incindir no trabalhar uma frase. Ora não é a frase que tem de se trabalhar: é aquilo que há-de passar por ela. Os autores célebres que trabalharam a frase, na realidade trabalharam apenas aquilo que haviam de exprimir; testaram na frase a realização de uma expressão. O escritor medíocre dá como já adquirido o que haveria a dizer e todo o seu esforço é secar o período, burilar ou envernizar o vocábulo. E no fim de contas, este é que «escreve bem». Mas quem assim escreve bem, escreve bastante mal. Não digo rasamente que o «conteúdo» preceda a sua «expressão». Mas o que preexiste à expressão não é um puro nada. Exprimir é operar e concretizar esse algo. Mas esse algo existe. Escrever bem, como se diz, é realizar pela escrita um «bem» que aí se revela mas que está antes e depois disso em que se revela. Escreve-se bem com o espírito e a sensibilidade - não com um dicionário. Embora seja no dicionário que está toda a obra-prima. Como na pedra está toda a melhor escultura."

Vergílio Ferreira, Conta-Corrente

Teoria da Presença de Deus

Somos seres olhados
Quando os nossos braços ensaiarem um gesto
fora do dia-a-dia ou não seguirem
a marca deixada pelas rodas dos carros
ao longo da vereda marginada de choupos
na manhã inocente ou na complexa tarde
repetiremos para nós próprios
que somos seres olhados

E haverá nos gestos que nos representam
a unidade de uma nota de violoncelo
E onde quer que estejamos será sempre um terraço
                                                                a meia altura
com os ao longe por muito tempo estudados
perfis do monte mário ou de qualquer outro monte
o melhor sítio para saber qualquer coisa da vida

Ruy Belo,  Aquele Grande Rio Eufrates

Vergílio Ferreira 30 - (1916 - 2016)

"Todos os sentimentos têm o seu contraponto. Excluída a piedade, a crueldade não o tem. Por experiência se pode saber quanto se sofre quando não se é amado. Mas isso de nada vale quando se não ama quem nos ama: é-se de pedra e implacável. Decerto, tudo se pode pedir e obter. Excepto que nos amem, porque nenhum sentir depende da nossa vontade. Mas só no amor se é intolerante e cruel. Porque mostar amor a quem nos não ama rebaixa-nos a um nível de degradação. E a degradação só nos dá lástima e repulsa. A única possibilidade de se ser amado por quem nos não ama é parecer que se não ama. Então não se desce e assim o outro não sobe. E então, porque não sobe, ele tem menos apreço por si, ou seja, mais apreço pelo amante. O jogo do amor é um jogo de forças. Quanto mais se ama mais fraco se é."

 

Vergílio Ferreira, Conta Corrente

Vergílio Ferreira - "A Guarda" (28.01.2016)

A memória das palavras


Vergílio Ferreira


Celebram-se hoje, exactamente, os 100 anos do nascimento de Vergílio Ferreira. Escritor maior da literatura portuguesa será recordado enquanto houver um ser humano pensante neste planeta Terra e enquanto houver um português também ele pensante. Não se gosta facilmente da obra vergiliana pois ela obriga a pensar e este acto, como lembrava o poeta, “incomoda como andar à chuva.” Em Vergílio Ferreira não podemos apenas ler, temos de entrar na escrita e aí o escritor arrasta-nos consigo para o mundo do pensamento. Viver é, pois, pensar. Ele próprio não era de fácil convivência com os seus semelhantes, cultivava um pouco o distanciamento para assim criticar livremente os actos sociais. Testemunhos desta crítica são os vários volumes do seu diário: “Conta-corrente” (9 volumes) e as obras “Pensar” e “Escrever”. Nas suas páginas encontramos amiúde desabafos sobre o que se passa no país e qual o seu ponto de vista acerca de determinados temas recorrentes na sociedade em que vivia. Relevantes nesta linha são também os seus livros de ensaios ou de reflexões como “O espaço do invisível”.
Podemos afirmar que em Vergílio Ferreira há duas seduções: a da vida e a da escrita. A primeira é mais subjectiva, a segunda mais objectiva. A sua vida foi de facto um percurso singular de Homem íntegro, professor dedicado e pensador livre. A infância passada na sua terra natal, Melo, Gouveia, deu-lhe matéria a muitas páginas dos seus livros. Com os pais emigrados esteve entregue aos cuidados das tias que lhe traçaram o caminho do Seminário do Fundão. Frequentou depois o Liceu da Guarda e a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Recusada uma entrada para Assistente na Faculdade enveredou pelo professorado e exercendo o seu múnus em várias localidades acabando por efectivar no Liceu Camões em Lisboa.
Na escrita, a sedução é a da palavra, semente do pensar, da reflexão e da vivência. Os romances vergilianos são, normalmente, actos de pensar. Na linha existencialista viver implica reflectir e cada texto é pois um acto de reflexão introspectiva feita no espaço interior de cada indivíduo. Mas este espaço é constituído não só pelas vivências pessoais que cada um de nós experiencia, como também pelas vivências que vêm de trás, apreendidas pela educação e até pela hereditariedade. Cedo começou a escrever e iniciou o seu percurso de escritor com preferência pelo romance inserido na corrente do neo-realismo. Dessa época são os primeiros livros: O caminho fica longe, Onde tudo foi morrendo e Vagão J. A partir de Mudança entra na linha do existencialismo cristão bebendo inspiração em André Malraux e Karl Jaspers. Mais tarde enveredará por uma escrita mais pessoal e nessa linha se manterá até à morte. Da narrativa destacam-se dois romances que marcaram a sua vida de escritor: Aparição, publicado em 1959 e Para sempre, publicado em 1983. O primeiro é um livro de referência do século XX português porque não só releva o nome do autor para a ribalta da literatura portuguesa, mas acima de tudo porque é uma reflexão sobre os grandes problemas que preocupavam a Europa do pós-guerra. O segundo é uma epopeia do sofrimento humano, da dor, da vida e sobretudo da morte. É um livro, por isso, difícil de ler não pelo vocabulário empregue, mas pela agudeza das afirmações e da reflexão constante em que somos imersos. Os dois são, de facto, obras primas da literatura portuguesa e Vergílio Ferreira é um dos maiores autores do século. Agora que a Quetzal vai reeditar as obras do autor é uma ocasião propícia para relermos ou lermos os seus livros.
Em relação à nossa cidade, onde estudou e voltou algumas vezes, ela está presente em várias obras quer pela menção directa que lhe é feita, quer pelo topónimo Penalva. É no romance Estrela Polar que Penalva surge aos olhos do leitor como uma réplica da Guarda. Aí vemos muitas descrições de espaços citadinos, identificamos os nomes das ruas e das praças e movimentamo-nos pela ideologia inerente ao pensamento citadino da época. (A este propósito no próximo sábado haverá uma visita guiada pela cidade, organizada pela BMEL, para conhecermos melhor os espaços referidos nas obras de Vergílio Ferreira.)

José Manuel Monteiro

Vergílio Ferreira 28 - (1916 / 2016)

"O orgulho não é um exclusivo dos grandes países, porque ele não tem que ver com a extensão de um território, mas com a extensão da alma que o preencheu. A alma do meu país teve o tamanho do mundo. Estamos celebrando a gesta dos portugueses nos seus descobrimentos. Será decerto a altura de a Europa celebrar também o que deles projectou na extraordinária revolução da sua cultura. Uma língua é o lugar donde se vê o mundo e de ser nela pensamento e sensibilidade. Da minha língua vê-se o mar. Na minha língua ouve-se o seu rumor como na de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi em nós a da nossa inquietação. Assim o apelo que vinha dele foi o apelo que ia de nós. E foi nessa consubstanciação que um novo espírito se formou, como foi outro o espírito da Europa inteira na reconversão total das suas evidências."

Vergílio Ferreira, Espaço do Invisível

Vergílio Ferreira 26 - (1916)

“Mas eis que surge inexorável outro espaço de memória marcado a vento, a solidão e a saudade. Sentada no cimo da montanha, essa cidade Velha, de lentos fantasmas ferrugentos, há-de elevar-se para sempre perto da estrela polar. Reconstitui-se-nos partícula a partícula na vertigem de uma adolescência rebelde, prenhe da brancura fria de uma neve frequente e fértil. Cidade branca e corroída dos séculos, abrigando-se à sombra pesada da velha Sé. Ruas apertadas nos muros obsidiantes do burgo medieval, canais estreitos de ventos gélidos estratificados na rama espessa das árvores da mata. Cidade que termina abruptamente, caindo no abismo das ladeiras íngremes subindo afogueadas para o infinito das gárgulas obscenas que o sagrado templo mostra irónico aos turistas acidentais. Cidade circular onde, na angústia das ruas, se espelha o labirinto do Ser que ciclicamente regressa sempre ao ponto de partida. Cidade mudada em Penalva, aninhada no cume da montanha e refractária a novas ideias."

 

J M (Reescrito a partir de Estrela Polar)

...

tenho comigo um silêncio
repousante
um silêncio quente e frio
ansiante

 

tenho-o no centro de mim
anquilosado
mesmo que o procure não o sei
em qualquer lado

 

gosto dele assim contraditório?
talvez não
pode estar no centro da cabeça
mas fugiu do coração

 

triste tempo triste sina triste lua
onde a alegria?
nem paz nem furor nem alma
onde o sol onde o dia?

 

J M

Vergílio Ferreira 25 - (1916)

"Para o bairro do Cabo, num esporão do cerro, rebrilham as janelas de um agrupamento de casas. E instintivamente olho os portões do Sanatório a larga rua e que mal diviso agora entre massas de arvoredo. Tomámos novamente o carro não sabíamos para onde. Contornámos o jardim que fica em frente do quartel, metemos por uma pequena rua que vem dar a um largo palidamente iluminado por candeeiros vagabundos e onde alastra o soturno edifício da cadeia – da cadeia! A face da cadeia tem um ar cerrado de dentes na mole negra de granito travada toda a ferros. Do largo da cadeia vamos à rua do Marquês, subimos à da Misericórdia, do Comércio, saímos à praça, em cujo topo oscila em sombra a velha sé. Subimos ainda a rua do castelo, descemos uma rua íngreme que acaba ao pé do Sanatório.
“E Penalva é triste, oh, Penalva é uma terra triste.”

Não há vento, Penalva imobiliza-se desde toda a eternidade, o ar é leve como um êxtase."

 

Vergílio Ferreira, Estrela Polar

Pág. 1/4