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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

20 anos!

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Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei.

 

JOSÉ LUIS PEIXOTO, in MORRESTE-ME (Temas e Debates, 2001)

...

Inopinadamente
a tarde deixou-se dominar
pelos gatos selvagens;
inadvertidamente
a andorinha poisou
no resto do fio telefónico
que corta os ares dos subúrbios
da cidade descansada;

 

quando o gato saltou
apanhou apenas a cidade
pois a andorinha exímia
acordara a tempo
avisada pela chamada do destino
na inopinada linha telefónica.

 

24.05.2015

J M

ABRAÇA-ME

Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas.
Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram.
Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que delem fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.

 

JOAQUIM PESSOA ,in 'Ano Comum'

"POEMA-ME"

Foi apresentada ao público e posta à venda, no sábado passado, esta antologia de autores lusófonos publicada pela editora Lua de Marfim. Entre os inúmeros poemas da colectânea está um poema meu (pág. 109). É a minha primeira publicação em livro depois de revistas e em blogues e redes sociais. Aqui deixo a capa, contracapa e a página com o meu poema.

capa.jpg  Poema-me1.JPG    poema.JPG

 

Nostalgia

Ó domingos da minha infância,

cheios de sol, por dentro e por fora da vida.

 

Quem me dera voltar a ter-vos

e gozar cada instante em brincadeira desmedida!

 

Quem me dera recuperar aquela liberdade

de voar pelo céu da minha ilusão

 

como as aves da primavera, da felicidade

e desprender-me esta angústia do coração!

 

Hoje sois apenas domingos, durais!

Que sincera nostalgia, ainda que doa

 

faz sempre desejar viver muito mais

para reler a poética fingida de Pessoa!

 

10.05.2015

J M

 

 

MÃE

 

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    Aqui, mergulhado nesta tarde primaveril, afagado pelas suaves brisas vespertinas, recordo a tua vivacidade e as tuas carícias, Mãe.
    Os teus aromas a terra e a hortelã saciavam-nos os sentidos e as tuas mãos calosas, ao passar pelo rosto, eram mais macias que o veludo cálido da tua veste. A tua vivacidade arrastava-nos na voragem dos teus movimentos inquietos e sempre nos levava atrás de ti, seguindo-te as pisadas físicas ou psicológicas. Eras uma estrela vívida e brilhante, que nós sabíamos cadente, mas em que não queríamos pensar, porque te julgávamos eterna e perene – e, apesar de tudo, sê-lo-ás.
    Hoje, a tua memória trai-te a cada passo e a tua vivacidade definha com as forças que os anos te consomem. Somos ainda nós, para ti, não os teus filhos, ou netos – a memória traiu-te mesmo! – mas alguém com quem gostas de estar, de passar alguns momentos – e tantas vezes a vida nos arrasta para longe e impede de estar mais um pouco contigo! Hoje vives fechada em ti, recordas outras vidas, às vezes só tuas, mas continuas a acariciar-nos com as tuas mãos delgadas e ásperas que, contudo, permanecem carinhosas e de veludo, porque são as tuas.
    Mãe, as brisas primaveris continuarão a passar e os aromas estarão connosco!
 
(José Monteiro - 03.05.2009)