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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Sim, sei bem

Sim, sei bem

Que nunca serei alguém.

    Sei de sobra

Que nunca terei uma obra.

    Sei, enfim,

Que nunca saberei de mim.

    Sim, mas agora,

Enquanto dura esta hora,

    Este luar, estes ramos,

Esta paz em que estamos,

    Deixem-me crer

O que nunca poderei ser.

 

Ricardo Reis

Abdicação

A minha vontade abandonou-me.

Caminho entre o nada e coisa nenhuma.

A minha constante errância cansou-me

Hoje vagueio: ideias nem uma.

 

Ando perdido entre mim e mim

Deserto da vida no deserto da vida

Nada acho nem sequer um fim.

Será isto amargura e despedida?

 

Olho-me ao espelho e desconheço

O que havia de mim no meu rosto.

Um estranho que não conheço

Fez-me Dezembro em Agosto.

 

Que sentido da vida afinal me resta

Se mascarado de príncipe deserdado

Ninguém me convida para a festa?

Abdico e sento-me abandonado.

 

20.11.2013

 

JM

ACASO

 

No acaso da rua o acaso da rapariga loira.

Mas não, não é aquela.

 

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

 

Perco-me subitamente da visão imediata,

Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,

E a outra rapariga passa.

 

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!

Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,

E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

 

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!

Ao menos escrevem-se versos.

Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar.

Se calhar, ou até sem calhar,

Maravilha das celebridades!

 

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...

Mas isto era a respeito de uma rapariga,

De uma rapariga loira,

Mas qual delas?

Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,

Numa outra espécie de rua;

E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade,

Numa outra espécie de rua;

Porque todas as recordações são a mesma recordação,

Tudo que foi é a mesma morte,

Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

 

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.

Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?

Pode ser... A rapariga loira?

É a mesma afinal...

Tudo é o mesmo afinal...

 

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isso é o mesmo também afinal.


Álvaro de Campos

Breve o inverno

Breve o inverno virá com sua branca

        Nudez vestir os campos.

As lareiras serão as nossas pátrias

        E os contos que contarmos

Assentados ao pé do seu calor

        Valerão as canções

Com que outrora entre as verdes ervas rijas

        Dizíamos ao sol

O ave atque vale triste e alegre,

        Solenes e carpindo.

Por ora o outono está connosco ainda.

        Se ele nos não agrada

A memória do estio cotejemos

        Com a esperança hiemal.

E entre essas dádivas memoradas

        Como um rio passemos.


 

 Ricardo Reis

Bocas roxas de vinho

Bocas roxas de vinho

Testas brancas sob rosas,

Nus, brancos antebraços

Deixados sobre a mesa:

 

Tal seja, Lídia, o quadro

Em que fiquemos, mudos,

Eternamente inscritos

Na consciência dos deuses.

 

Antes isto que a vida

Como os homens a vivem,

Cheia da negra poeira

Que erguem das estradas.

 

Só os deuses socorrem

Com seu exemplo aqueles

Que nada mais pretendem

Que ir no rio das coisas.


Odes de Ricardo Reis, Fernando Pessoa

Quando eu não te tinha

Quando eu não te tinha

Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...

Agora amo a Natureza

Como um monge calmo à Virgem Maria,

Religiosamente, a meu modo, como dantes,

Mas de outra maneira mais como vida e próxima.

Vejo melhor os rios quando vou contigo

Pelos campos até à beira dos rios;

Sentado a teu lado reparando nas nuvens reparo nelas melhor —

Tu não me tiraste a Natureza...

Tu mudaste a Natureza...

Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,

Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,

Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,

Por tu me escolheres para te ter e te amar,

Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente

Sobre todas as coisas.

Não me arrependo do que fui outrora

Porque ainda o sou.

 

“O Pastor Amoroso” Alberto Caeiro

Colhe o momento / Carpe diem

Amamos em cada dia de maneira diferente,

pois cada dia é desigual do anterior.

 

Assim, como podemos amar sempre o mesmo

se ele muda continuamente?

 

O amor, em si, é versátil :

muda na hora em que vivemos

o presente eterno.

 

Amamos cada dia de maneira diferente

porque o ontem dissipou-se

e o amanhã ainda lá vem subindo devagar

a escada multiforme do tempo.

 

"Colhe o momento" e terás a ventura

de viver cada instante o que ele dura.

 

10.11.2011

 

JM