E houve um teu sorriso
na meiguice do vento sul
disperso, leve e impreciso
que tornou o cinzento em azul
E em seguida a gargalhada
irrompeu impetuosa e necessária
flor de desperta madrugada
fantástica, muda, extraordinária
E houve o teu corpo ainda
impulsivo, agitado e sedutor
rodopiando naquela dança linda
Depois ... bem, depois o sorriso, o amor
realizou-se naquela tarde infinda
numa gargalhada do corpo, indolor!
25.10.2013 J. M.
A aranha do meu destino
Faz teias de eu não pensar.
Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada
Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida baloiçada
Na consciência de existir
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou presa do meu suporte.
Fernando Pessoa, 10-8-1932
Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa
Substitui o calor.
P'ra ser feliz tanta coisa é precisa.
Este luzir é melhor.
O que é a vida? O espaço é alguém para mim.
Sonhando sou eu só.
A luzir, em quem não tem fim
E, sem querer, tem dó.
Extensa, leve, inútil passageira,
Ao roçar por mim traz
Uma ilusão de sonho, em cuja esteira
A minha vida jaz.
Barco indelével pelo espaço da alma,
Luz da candeia além
Da eterna ausência da ansiada calma,
Final do inútil bem.
Que se quer, e, se veio, se desconhece
Que, se for, seria
O tédio de o haver... E a chuva cresce
Na noite agora fria.
Fernando Pessoa, 18-9-1920
A criança que ri na rua,
A música que vem no acaso,
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo —
Tudo isso excede este rigor
Que o raciocínio dá a tudo,
E tem qualquer coisa de amor,
Ainda que o amor seja mudo.
F. Pessoa, 4-10-1934
S e pudesse voltar atrás
A o tempo em que me tinhas ao colo...
U m tempo de paz, harmonia, felicidade,
D e encanto com teu canto,
A ntes de seres apenas saudade.
D izer-te o quanto ficou por dizer
E nfim ... sofrer é sempre morrer!
(Eterna e perene lembrança de TI!)
JM
Ando há dias com a sensação
de ver a realidade desfocada.
Algo me turva a visão ,
desfeia a nitidez do olhar
e perverte a luz derramada.
Há pouco, pensando com mais clareza,
notei que afinal era pó, tudo baço,
nas lentes dos óculos bifocais.
Limpá-las era fácil! Mas haverá beleza
na realidade tão cruel? Não será demais
o esforço? Limpá-las? Não o faço!
07.10.2013
J. M.
Para um amigo tenho sempre um relógio esquecido em qualquer fundo de algibeira. Mas esse relógio não marca o tempo inútil. São restos de tabaco e de ternura rápida. É um arco-íris de sombra, quente e trémulo. É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.
António Ramos Rosa, in "Viagem Através de uma Nebulosa"
Chove?... Nenhuma chuva cai... Então onde é que eu sinto um dia Em que o ruído da chuva atrai A minha inútil agonia? Onde é que chove, que eu o ouço? Onde é que é triste, ó claro céu? Eu quero sorrir-te, e não posso, Ó céu azul, chamar-te meu... E o escuro ruído da chuva É constante em meu pensamento. Meu ser é a invisível curva Traçada pelo som do vento... E eis que ante o sol e o azul do dia, Como se a hora me estorvasse, Eu sofro... E a luz e a sua alegria Cai aos meus pés como um disfarce. Ah, na minha alma sempre chove. Há sempre escuro dentro em mim. Se escuto, alguém dentro em mim ouve A chuva, como a voz de um fim ... Quando é que eu serei da tua cor, Do teu plácido e azul encanto, Ó claro dia exterior, Ó céu mais útil que o meu pranto?
1-12-1914
Fernando Pessoa
Tantas voltas o mundo há-de dar Que alguma coisa se há-de aproveitar E se o outro lado pode ser pior Também pode muito bem ser melhor Virar o mundo de dentro para fora e ver se o mundo assim melhora e se nem assim o mundo melhorar voltá-lo a virar, a virar, a virar. Manuel António Pina