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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

António Franco Alexandre

«Já a luz se apagou do chão do mundo,
deixei de ser mortal a noite inteira;
ofensa grave a minha, que tentei
misturar-me aos duendes na floresta.
De máscara perfeita, e corpo ausente,
a todos enganei, e ninguém nunca
saberia que ainda permaneço
deste lado do tempo onde sou gente.
Não fora o gesto humano de querer-te
como quem, tendo sede, vê na água
o reflexo da mão que a oferece,
seria folha de árvore ou sério gnomo
absorto no silêncio de uma rima
onde a morte cessasse para sempre.»

 

Duende

Mia Couto - Prémio Camões 2013

Para Ti


Foi para ti 
que desfolhei a chuva 
para ti soltei o perfume da terra 
toquei no nada 
e para ti foi tudo 

Para ti criei todas as palavras 
e todas me faltaram 
no minuto em que talhei 
o sabor do sempre 

Para ti dei voz 
às minhas mãos 
abri os gomos do tempo 
assaltei o mundo 
e pensei que tudo estava em nós 
nesse doce engano 
de tudo sermos donos 
sem nada termos 
simplesmente porque era de noite 
e não dormíamos 
eu descia em teu peito 
para me procurar 
e antes que a escuridão 
nos cingisse a cintura 
ficávamos nos olhos 
vivendo de um só 
amando de uma só vida 

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

Padre António Vieira

A memória das palavras

Padre António Vieira

 

Amar a quem me aborrece, é ser humano com quem o não é comigo: aborrecer a quem me ama, é ser cruel com quem mo não merece: o ser humano é ser homem; o ser cruel é ser fera: logo aborrecer a quem nos ama, tanto mais dificultoso é, quanto mais repugnante à natureza. (P.e António Vieira, “Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma “)

 

    A literatura, embora não devesse, também está sujeita a modas, a vagas de fundo. Os escritores que muitas vezes andam esquecidos, voltam à ribalta quando se faz uma edição das suas obras ou quando se assinala uma efeméride. Não que isto seja mau. O mau é que autores essenciais andem muito tempo arredados do grande público e só nessas ocasiões apareçam novamente. Vem isto a talho de foice pela reedição das obras completas do Padre António Vieira.

     A publicidade, as campanhas de promoção vêm repor este “imperador da língua portuguesa” (no palavrar de Fernando Pessoa) no lugar que lhe compete em termos da literatura portuguesa. A sua prosa é sem dúvida o apogeu da nossa escrita e isto - lembremos -  durante o século XVII. A sua arte do domínio da língua foi excelente e aquilo que ele foi capaz de fazer dizer à língua nunca mais ninguém o conseguiu com tamanha plenitude. Deveria ser um autor de leitura obrigatória no ensino secundário não limitado ao “Sermão de Santo António aos Peixes”, mas com mais dois ou três exemplos de argumentação. E se os nossos políticos lessem e assimilassem os seus textos oratórios não fariam discursos tão balofos e sem ideias, nem tão vazios de sentido. A sua grandeza é comprovada pelos testemunhos que lemos muitas vezes de autores que confessadamente se dizem ateus. José Saramago no seu amor à língua portuguesa (o mesmo não se poderá dizer em relação a Portugal) afirmou sobre o Padre Vieira: “A língua portuguesa nunca foi mais bela que quando a escreveu esse jesuíta.” E outro confesso ateu e grande poeta do século XX, Ary dos Santos, tem a melhor declamação do “Sermão de Santo António aos Peixes” de todos os tempos. Servem estes dois exemplos para corroborar o valor unânime à volta desta grande figura das nossas letras e o maior português do século XVII. A sua figura é ímpar pois além de “sermoeiro” reconhecido internacionalmente (recorde-se a sua fama em Roma) com os dotes excelsos de maior orador da época, foi também ecologista, pacifista, embaixador de Portugal, político, economista e defensor dos índios entre outros atributos e atividades. Mas o que atrai mais na sua figura é a verticalidade que sempre mostrou perante os poderosos e que lhe valeu a passagem pelos cárceres da Inquisição, por acaso ainda bem, pois lhe permitiu rever os seus sermões e prepará-los para a publicação posterior. A atualidade dos seus escritos é gritante. Veja-se este exemplo: “O maior jugo de um reino, a mais pesada carga de uma república, são os imoderados impostos. Se queremos que sejam leves, se queremos que sejam suaves, repartam-se por todos. Não há tributo mais pesado que o da morte, e contudo todos o pagam, e ninguém se queixa; porque é tributo de todos.” (Sermão de Santo António, Lisboa, na Igreja das Chagas). Ou este: A mais poderosa inclinação, e o maior apetite do homem, é desejar ser. […] Não está o erro em desejarem os homens ser; mas está em não desejarem ser o que importa. (Sermão de Todos os Santos, no Convento de Odivelas).

Para José Eduardo Franco, diretor da edição acima referida com Pedro Calafate, o Padre António Vieira é «…um homem atual que lutou contra a escravatura pela reforma da Inquisição um crítico das más práticas políticas da divisão da sociedade entre cidadãos de primeira e de segunda defensor da abolição da diferença de direitos dos chamados cristãos novos e cristãos velhos capaz de fazer um diagnóstico de Portugal e da mentalidade portuguesa do seu tempo e que dizia que a verdadeira fidalguia estava na ação. Ele faz muito sentido neste tempo de crise em que vivemos.»

 

Gonçalves Monteiro

 

[texto publicado no jornal "A Guarda" - 16.05.2013 que também pode ser lido aqui.]

Nuno Júdice vence Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana

Poema de Amor para Uso Tópico

Quero-te, como se fosses 
a presa indiferente, a mais obscura 
das amantes. Quero o teu rosto 
de brancos cansaços, as tuas mãos 
que hesitam, cada uma das palavras 
que sem querer me deste. Quero 
que me lembres e esqueças como eu 
te lembro e esqueço: num fundo 
a preto e branco, despida como 
a neve matinal se despe da noite, 
fria, luminosa, 
voz incerta de rosa. 

Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”

 

 

(Ler mais aqui: http://www.publico.pt/cultura/noticia/nuno-judice-vence-premio-rainha-sofia-de-poesia-iberoamericana-1594604)

...

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!

Faltar é positivamente estar no campo!

Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!

Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros.

Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,

Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia que não vinha.

Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.

Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.

É tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,

Deliberadamente à mesma hora...

Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.

É tão engraçada esta parte assistente da vida!

Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto,

Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.


Álvaro de Campos

O silêncio

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,
e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

 

quando azuis irrompem
os teus olhos

 

e procuram
nos meus navegação segura,

 

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

 

pelo silêncio fascinadas.

 

Eugénio de Andrade