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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Da Literatura

A memória das palavras

 

Da Literatura

1.    Nobel da Literatura


     Como todos os anos em Outubro caem as folhas das árvores e caem os famosos prémios Nobel. Como todos os anos há surpresas. Em relação à literatura, apostava-se forte num japonês e vence um chinês. Coisas do comité. Perfilava-se a vitória de HaruKi Murakami em quem apostavam as agências internacionais ligadas ao sector e eis que vence Mo Yan. Sinceramente tinha ouvido o seu nome de passagem uma ou duas vezes, mas não me tinha demorado na sua obra. Ao menos esse mérito há que reconhecer aos prémios: fazer-nos conhecer e ler determinados autores pouco divulgados em termos do grande público.

     Quem é então este senhor quase desconhecido por cá? Nasceu em 1955, na China rural que retrata nos seus romances e a sua escrita enraíza-se no chamado “realismo mágico” de Garcia Marquez e outras correntes ocidentais. É originário do leste da China, província de Shandong, onde nasceu no seio de uma família pobre tendo abandonado os estudos durante a Revolução Cultural. Tornou-se camponês e entrou no Exército aos 20 anos. Começou por escrever um conto, em 1981, enquanto ainda era soldado e seis anos mais tarde publicou a primeira obra de sucesso “Red Sorghum” que foi adaptado ao cinema. Em 2011 foi galardoado com o Prémio Mao Dun, o mais importante do país, sendo também eleito vice-presidente dos escritores da China. O seu mais recente romance, "Frog", aborda um tema delicado no seu país: a prática de abortos forçados devido à drástica política de controlo da natalidade imposta há três décadas sob a fórmula "um casal, um filho". No nosso país só foi editado até ao momento um livro, em 2007, “Peito Grande, ancas largas”, na editora Ulisseia e traduzido por João Martins.

     Mo Yan (significa em chinês “não fale”), que é o pseudónimo de Guan Moye, considera que "um escritor deve enterrar os seus pensamentos e transmiti-los através dos personagens dos seus romances". Confessa-se admirador de Faulkner e Garcia Marquez e disse há pouco tempo que na China como “em todos os países há certas restrições à escrita”. Em declarações públicas diz ter ficado contente com o Prémio e declarou: «Vou concentrar-me na criação de novas obras. Quero aplicar-me mais para agradecer a todos». É um dos escritores chineses contemporâneos mais publicados fora da China, nomeadamente no Japão, França, Reino Unido, Alemanha e Estados Unidos.

     Aguardemos a publicação de obras do autor em português para nos podermos pronunciar criticamente sobre elas.

 

2. Penumbra

 

     Saiu recentemente, em edição de autor, - que isto de publicar poesia em editoras foi chão que já deu uvas - mais um livro do poeta Manuel A. Domingos. Natural de Manteigas, fez os estudos secundários e superiores aqui na Guarda, tendo enveredado pelo ensino e encontrando-se neste momento desempregado, vítima, também ele, dos drásticos e irracionais cortes na educação. No seu caso até pode ser útil, se é que nesta situação há algo de útil, pois oferece-lhe a oportunidade de continuar a escrever e publicar poesia. Oxalá! Este é o terceiro livro de poesia, depois de “Mapa”(2008) e “Teorias”(2011), e que vem reforçar o lugar adquirido por mérito próprio no panorama da actual poesia portuguesa. Tem também colaborado em algumas revistas e feito traduções de autores estrangeiros. Ele próprio define a sua poesia como irónica e por vezes até cínica. É, de facto, uma ironia da própria vida a que sobressai de alguns dos seus poemas. Já o escrevi uma vez e este livro vem confirmar que se trata de uma poetização do real quotidiano. Vê a beleza poética das coisas simples convertidas em motivo para a partilha com os outros. Olha e converte. “Há livros na estante / que nunca li / Esperam a sua vez / a ganhar pó // Olho para ti e não sei / que novidade encontro / sempre no teu olhar.” Ou então: “Hoje deu-me / para a melancolia / ficar assombrado / com a realidade das coisas.”

     Mas o melhor é ler mesmo a sua poesia e comprovar que se trata de um bom poeta.  

 

 3.    Manuel António Pina 

 

O texto terminava acima, mas a vida, fértil em surpresas, deu-nos na passada sexta-feira, a súbita notícia da morte deste grande poeta dos nossos dias, natural do Sabugal e que, nos últimos anos, esteve bastante ligado à Guarda, não só pela homenagem que a cidade lhe fez, mas também pelo prémio literário a que deu o nome. Era, hoje, no mundo das letras e do jornalismo, um nome incontornável. Poeta de obra feita e divulgada por esse mundo fora, foi também um cronista dos mais exímios deixando os seus belos e objectivos textos dispersos em vários jornais. Perde-se um grande poeta e a Guarda perde um bom amigo e divulgador do seu nome. Estes verbos no pretérito perfeito são enganadores, pois ele está entre nós e as suas palavras torná-lo-ão sempre presente cada vez que lermos um texto seu. Uma vez disse: “Eu sei lá para quem é que eu escrevo.” a propósito dos seus livros infantis, mas nós hoje sabemos que ele escreveu para nós o lermos, para lhe bebermos o génio da luta que habitava nele e para continuarmos os seus poemas na execução das palavras na vida. Repousa nos teus versos, já que nos deixas o projecto de “Como se desenha uma casa”, nos deixas em “Um país de pessoas de pernas para o ar!”, no entanto, “Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde”!

 

Gonçalves Monteiro


[Texto publicado hoje no jornal "A Guarda"]

Durmo ou não?

Durmo ou não? Passam juntas em minha alma
Coisas da alma e da vida em confusão,
Nesta mistura atribulada e calma
Em que não sei se durmo ou não.

Sou dois seres e duas consciências
Como dois homens indo braço-dado.
Sonolento revolvo omnisciências,
Turbulentamente estagnado.

Mas, lento, vago, emerjo de meu dois.
Disperto. Enfim: sou um, na realidade.
Espreguiço-me. Estou bem... Porquê depois,
De quê, esta vaga saudade?


                    Fernando Pessoa

...

(Sabugal, 1943 - Porto, 2012)

Manuel António Pina era reconhecido como um dos melhores cronistas de língua portuguesa

 

A morte e a vida morrem 
e sob a sua eternidade fica 
só a memória do esquecimento de tudo; 
também o silêncio de aquele que fala se calará. 

Quem fala de estas 
coisas e de falar de elas 
foge para o puro esquecimento 
fora da cabeça e de si. 

O que existe falta 
sob a eternidade; 
saber é esquecer, e 
esta é a sabedoria e o esquecimento. 

"Aquele que Quer Morrer"

MÃE

 

Palavras para a Minha Mãe

 

 

mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses 
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz. 
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente. 

pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste 
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te 
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente. 

às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo, 
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia 
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz. 

lê isto: mãe, amo-te. 

eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não 
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que 
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não 
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes. 

José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"



Descansa em paz. Descanso merecido de dever cumprido.

 

Sou Eu

Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo, 
Espécie de acessório ou sobressalente próprio, 
Arredores irregulares da minha emoção sincera, 
Sou eu aqui em mim, sou eu. 

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou. 
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma. 
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim. 

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente, 
Como de um sonho formado sobre realidades mistas, 
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico, 
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima. 

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua, 
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda, 
De haver melhor em mim do que eu. 

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa, 
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores, 
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho, 
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas, 
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida. 

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica, 
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar, 
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo — 
A impressão de pão com manteiga e brinquedos 
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina, 
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela, 
Num ver chover com som lá fora 
E não as lágrimas mortas de custar a engolir. 

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado, 
O emissário sem carta nem credenciais, 
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro, 
A quem tinem as campainhas da cabeça 
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima. 

Sou eu mesmo, a charada sincopada 
Que ninguém da roda decifra nos serões de província. 

Sou eu mesmo, que remédio! ... 

Álvaro de Campos

Pobre Velha Música!

 

 



Pobre velha música! 
Não sei por que agrado, 
Enche-se de lágrimas 
Meu olhar parado. 

Recordo outro ouvir-te, 
Não sei se te ouvi 
Nessa minha infância 
Que me lembra em ti. 

Com que ânsia tão raiva 
Quero aquele outrora! 
E eu era feliz? Não sei: 
Fui-o outrora agora. 

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"