Original é o poeta que se origina a si mesmo que numa sílaba é seta noutra pasmo ou cataclismo o que se atira ao poema como se fosse ao abismo e faz um filho às palavras na cama do romantismo. Original é o poeta capaz de escrever em sismo.
Original é o poeta de origem clara e comum que sendo de toda a parte não é de lugar algum. O que gera a própria arte na força de ser só um por todos a quem a sorte faz devorar em jejum. Original é o poeta que de todos for só um.
Original é o poeta expulso do paraíso por saber compreender o que é o choro e o riso; aquele que desce à rua bebe copos quebra nozes e ferra em quem tem juízo versos brancos e ferozes. Original é o poeta que é gato de sete vozes.
Original é o poeta que chega ao despudor de escrever todos os dias como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia como se fosse mulher e nela emprenha a alegria de ser um homem qualquer.
Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei.
JOSÉ LUIS PEIXOTO, in MORRESTE-ME (Temas e Debates, 2001)
Os navios existem e existe o teu rosto encostado ao rosto dos navios. Sem nenhum destino flutuam nas cidades, partem no vento, regressam nos rios.
Na areia branca, onde o tempo começa, uma criança passa de costas para o mar. Anoitece. Não há dúvida, anoitece. É preciso partir, é preciso ficar.
Os hospitais cobrem-se de cinza. Ondas de sombra quebram nas esquinas. Amo-te... E abrem-se janelas mostrando a brancura das cortinas.
As palavras que te envio são interditas até, meu amor, pelo halo das searas; se alguma regressasse, nem já reconhecia o teu nome nas minhas curvas claras.
Dói-me esta água, este ar que se respira, dói-me esta solidão de pedra escura, e estas mãos noturnas onde aperto os meus dias quebrados na cintura.
E a noite cresce apaixonadamente. Nas suas margens vivas, desenhadas, cada homem tem apenas para dar um horizonte de cidades bombardeadas.