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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

O HOMEM DOS SONHOS - Ruy Belo


Que nome dar ao poeta
esse ser dos espantos medonhos?
um só encontro próprio e justo:
o de José o homem dos sonhos

Eu canto os pássaros e as árvores
Mas uns e outros nos versos ponho-os
Quem é que canta sem condição?
É José o homem dos sonhos

Deus põe  e o homem dispõe
E aquele que ao longo da vereda vem
homem sem pai e sem mãe
homem a quem a própria dor não dói
bíblico no nome e a comer medronhos
só pode ser José o homem dos sonhos

MUDEZ

Que desgraça, meu Deus!
Tenho a Ilíada aberta à minha frente,
Tenho a memória cheia de poemas,
Tenho os versos que fiz,
E todo o santo dia me rasguei
À procura não sei
De que palavra, síntese ou imagem!
Desço dentro de mim, olho a paisagem,
Analiso o que sou, penso o que vejo,
E sempre o mesmo trágico desejo
De dar outra expressão ao que foi dito!
Sempre a mesma vontade de gritar,
Embora de antemão a duvidar
Da exactidão e força desse grito.
Mudo, mesmo se falo, e mudo ainda
Na voz dos outros, todo eu me afogo
Neste mar de silêncio, íntima noite
Sem madrugada.
Silêncio de criança que ficasse
Toda a vida criança,
E nunca conseguisse semelhança
Entre o pavor e o pranto que chorasse.

 

Miguel Torga

NA BIBLIOTECA

 

O que não pode ser dito
guarda um silêncio
feito de primeiras palavras
diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde,

 

quando já a incerteza
e o medo se consomem
em metros alexandrinos.
Na biblioteca, em cada livro,

 

em cada página sobre si
recolhida, às horas mortas em que
a casa se recolheu também
virada para o lado de dentro,

 

as palavras dormem talvez,
sílaba a sílaba,
o sono cego que dormiram as coisas
antes da chegada dos deuses.

 

Aí, onde não alcançam nem o poeta
nem a leitura,
o poema está só.
‘E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.’

 

Manuel António Pina, Poesia, Saudade da Prosa - uma antologia pessoal, Assírio & Alvim, 2011

 

Anjo da Guarda

Dia 10.

Volto ao anjo da Guarda: anjo prodigioso das terras altas e frias. pássaro baptismal com a substância múltipla da luz. O iluminar das serras é tarefa árdua porque os brilhos doem como insultos latinos. Pior que isso, e o anjo sabe-o, é ser um artista que devora a própria obra, quando a arte é combustível e o nome é uma espécie de rapaz feminino, alguma coisa que, estando a ser, já não o é. É o que Deus não diz do anjo, o que estabelece em nós, enquanto nervo dos sítios, floração de luz dos mínimos seixos. Já vem o anjo, da Guarda, pelo rosto de cada um de nós, facilitando o que se faz às escondidas, à procura de conferir o que aprendemos. Acendo a luz sobre esta obscuridade. Amo o anjo, e amo-me a mim. Só tu não fazes parte desta história.


Joaquim Pessoa,
(in) Ano Comum
Litexa Editora

Ó Mãe



Ó mãe, regressa a mim. Embala-me no tempo em que os teus lábios rebentavam de ternura. Ó mãe, ó minha mãe, ó rio de água pura, correndo pelas veias. Pelo vento.
Ó mãe, que és mãe de Deus, que és mãe de mim e mãe de Antero e de Camões, e mãe de quem lhe faltam as palavras como se faltasse o ar. E são assim uma espécie de filhos de ninguém. Abre o teu ventre, mãe. Acorda. Vem parir-me. E vem sofrer a minha dor uma vez mais. Morrer de amor por mim. Vem impedir-me o medo. Ensinar-me a amar a luz dos animais.
Ó mãe, ó minha mãe. Ó pátria. Ó minha pena. Que me pariste, assim, temperamental. Mãe de Ulisses, de Guevara e mãe de Helena. E mãe da minha dor universal.

 'Ano Comum'

A litania da ausência - João Rasteiro

e depois os pássaros irão

                         povoar de ti novas ilusões

                                                  Ruy  Belo

 

 

Falta-me a pureza do ar

nas obscuras palavras do meu país

e nas viscerais margens de um país,

 

e entrementes foi espigando o desamor

que a flor também desperdiçou

o meu desamor foi espigando desumano

em ufano país de lúcida quietude

enclausurado numa túnica de impuro sangue

enquanto os animais perduram

na mais recôndita paisagem das chuvas.

 

Falta-me o fingimento do verbo

nos obscurecidos poemas da minha plebe

e nos íntimos litorais de uma plebe,

 

falta-me a artificial puridade de Ruy Belo

indicando-nos a sua e nossa simetria de morte,

              

a mais galopante simetria de morte de um país.

 

[Retirado daqui: http://nocentrodoarco.blogspot.com/2011/11/canticos.html ]

aviso: frio - Américo Rodrigues

 

avisam-te do frio
que aí vem
fecha-te em casa
foge ao frio
e
à memória
do frio
da neve
do gelo
acende a lareira
queima os galhos
do castanheiro do avô
enrola-te no velho
cobertor de papa
e
fica aí parado
querem-te assim
quieto
paralisado pelo calor
corpo indolente
dormente
não saias à rua
não vás escorregar
por acaso
no que resta
de ti!

1/2/12
Américo Rodrigues