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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Poesia e poemetos

Há dias o jornal "A Guarda", pela voz do amigo Padre Francisco Barbeira, pediu-me umas palavras sobre o Dia Mundial da Poesia. Disse-as, mas claro, se fosse hoje di-las-ia de outra maneira. Para registo futuro podem ser lidas aqui. Espero que façam alguém ler um pouco de poesia e ....

Mulher vestida de escuro

Essa mulher vestida de escuro,

sentada à porta de casa

tinha gravada no olhar a espera.

 

Esperavas o quê, boa mulher?

A brisa do vento,

O nascer do pensamento,

O calor da tarde,

A presença dos filhos ausentes.

(Afinal o que sentes?)

Esperavas na mesma

porque a tua espera vinha de sempre:

estava-te no sangue da aldeia.

Germinava-te na ideia

como as sementes que deitavas à terra

com o mesmo carinho das tuas mãos escuras

acariciando as feridas leves dos teus filhos

limpas com o tacto dos teus lábios.

 

Hoje desabitaste a casa

que parece um deserto sombrio:

a porta fechou-se

e a tua espera está em ti,

mulher vestida de escuro.

 

JM (21.03.2011)

 

[Poema lido ontem na sessão da BMEL, "verso a verso se guarda a poesia na Guarda! Foi bom rever e aprender com bons amigos!]

OS NOTICIÁRIOS DA MANHÃ

 
Os noticiários da manhã abriram com essa imagem
fabulosa: dois poetas construíam um edifício.
Não era um edifício abstracto. Não
era o utópico edifício do coração das obras.
Era um edifício verdadeiro: alicerces,
paredes, telhado; pedra, tijolos,
cimento. Em vez do exercício habitual
de poetas procurando destruir os edifícios
todos da cidade, um a um, disparando canhões
de pólen, estes dois poetas erguiam
um edifício verdadeiro, concreto,
tangível. E isto é de uma humanidade
comovente. E isto chego a pensar
que quase merecia um poema.
 
José Carlos Barros

UM DIZER AINDA PURO

 
imagino que sobre nós virá um céu
de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonamos a flor.
 
dizes: põe nos meus os teus dedos
e passemos os séculos sem rosto,
apaguemos de nossas casas o barulho
do tempo que ardeu sem luz.
sim, cria comigo esse silêncio
que nos faz nus e em nós acende
o lume das árvores de fruto.
 
diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro.

Vasco Gato

Escrever - Irene Lisboa

 

Se eu pudesse havia de... de...

transformar as palavras em clava!

havia de escrever rijamente.

Cada palavra seca, irressonante!

Sem música, como um gesto,

uma pancada brusca e sóbria.

Para quê,

mas para quê todo o artifício

da composição sintáctica e métrica,

este arredondado linguístico?

Gostava de atirar palavras.

Rápidas, secas e bárbaras: pedradas!

Sentidos próprios em tudo.

Amo? Amo ou não amo!

Vejo, admiro, desejo?

Ou não... ou sim.

E, como isto, continuando...

 

E gostava,

para as infinitamente delicadas coisas do espírito

(quais? mas quais?)

em oposição com a braveza

do jogo da pedrada,

da pontaria às coisas certas e negadas,

gostava...

de escrever com um fio de água!

um fio que nada traçasse...

fino e sem cor... medroso...

Ó infinitamente delicadas coisas do espírito...

Amor que se não tem,

desejo dispersivo,

sofrimento indefinido,

ideia incontornada,

apreços, gostos fugitivos...

Ai, o fio da água,

o próprio fio da água poderia

sobre vós passar, transparentemente...

ou seguir-vos, humilde e tranquilo?

 

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