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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

“PRO ARCHIA”*/Elogio da cultura

 

    Há dias atrás, ao arrumar uns livros, dei com um pequeno opúsculo intitulado “Em defesa do Poeta Árquias”. E lembrei-me do que aprendi de humanidade, na Faculdade de Letras de Lisboa, da sua tradutora, Dra. Mª Isabel Rebelo Gonçalves. Isso mesmo, de humanidade, a humanitas latina que englobava todas as capacidades que um homem deveria ter para ser verdadeiro cidadão romano e entre as quais se contava a cultura. Não é que os romanos – homens do prático – dessem muito valor às letras e às artes da escrita. Despertaram para esse valor quando conquistaram a Grécia e, a partir daí, os nobres romanos mandavam para lá ou para outros focos da sabedoria grega, como Alexandria, os seus filhos aprender. Ora um dos produtos dessa filosofia, desse amor à sabedoria, foi precisamente o autor do livrinho citado acima, Marco Túlio Cícero, orador, político, escritor, jurista dos maiores que Roma conheceu. Este discurso judicial – em Latim Pro Archia – serviu, ao seu autor, para fazer em público a apologia daquilo que ele mesmo fazia: a arte de escrever. Por isso, quando em 62 a.c., aceitou defender em tribunal o direito à cidadania romana de Aulo Licínio Árquias, cidadão grego e um poeta menor, fez história no mundo ocidental. Cícero, não só aproveitou a ocasião para defender o direito à cidadania romana de todos os que a desejassem, mas também para fazer, perante os práticos romanos, a apologia e louvor daqueles que se dedicavam às letras. Foi a primeira vez que num tribunal público se defendeu o direito à cultura e se “exibiu” esta como uma qualidade merecedora de distinção. (Assim o defendeu o mestre filólogo, Francisco Rebelo Gonçalves, que afirmou a propósito: «pela primeira vez se ouviu num tribunal romano um louvor deste género e, pela primeira vez também, pôde um romano confessar em público o orgulho de ser escritor»). Árquias era protegido pela família dos Luculos e tinha escrito alguns poemas em grego sobre esta família e sobre outros assuntos. Mas, por intrigas políticas, é acusado por Grátio de não ser cidadão romano. Cícero prova que ele é cidadão romano de facto e recorre a argumentos extra causa para provar que o poeta merece a cidadania romana, não só porque vivia há muitos anos em território romano, mas especialmente porque se dedicava às letras e isso, segundo ele, era um motivo suficiente para lhe ser atribuída a cidadania. Ao fazer o elogio das letras, explica que estas dignificam as pessoas que as cultivam e relembra os nomes de antigos romanos que se destacaram pelo seu desempenho, como os Cipiões, Catão, etc.. E que houve grandes romanos que, não tendo talento para as cultivar, as admiraram por aquilo que oferecem já que o estudo das letras é uma ocupação das mais nobres. Depois vai argumentando que a cultura não pode ter fronteiras e se muitos generais concediam prémios a poetas, ainda que medíocres, era porque o desejo de glória afecta todos o seres humanos inclusive o próprio autor. Este desejo é um meio seguro de alcançar a imortalidade que é a única recompensa digna de grandes feitos preferível a estátuas e monumentos mais facilmente perecíveis. Apontando o seu exemplo afirma: “Se desde a juventude me não tivesse convencido com as lições de muitos e com muitas leituras de que nada se deve pertinazmente ambicionar na vida do que glória e honra e de que para as alcançar se deve ter em pouca conta a tortura física e quaisquer outros riscos, nunca eu teria arrostado tantas e tamanhas lutas e estes diários ataques de homens tão corruptos. (…) estes estudos nutrem a juventude, distraem a velhice, realçam os momentos felizes, propiciam refúgio e conforto nos infelizes, deleitam-nos em casa, não nos estorvam na rua, dormem connosco, connosco viajam, acompanham-nos no campo. E mesmo que nós próprios não conseguíssemos entender, nem apreciássemos tais estudos, deveríamos pelo menos admirá-los.” (O texto é mais saboroso no original porque, como se costuma dizer, o tradutor é um traidor, contudo hoje quem estuda Latim nas escolas? Não será também por isso que há tanta iliteracia?)

     Perante tal argumentação o tribunal deu a cidadania romana ao poeta que não seria conhecido hoje se não fosse o talento de Cícero. Era bom que o estudo do Latim e dos escritores clássicos voltasse às salas de aula pois muito haveria a aprender com eles. Se algumas figuras da nossa praça conhecessem o “Pro Archia”, não fariam tão triste figura quando querem amesquinhar aqueles que se dedicam a fazer com que as pessoas tenham acesso a essa mesma cultura. Uma cidade que, como a nossa, tem um programa cultural, ao longo de todo o ano, devia orgulhar-se disso e devia “usar” essa prerrogativa para atrair visitantes, para mostrar que não tem medo de se medir com os grandes centros culturais do país. Se soubéssemos aproveitar este facto, seríamos cidadãos livres capazes de fazer inveja ao grande cidadão romano Cícero que passou a vida a lutar pela liberdade e acabou por ser vítima daqueles que não aceitavam a liberdade como norma de vida. Ou, como dizia o pensador Agostinho da Silva, “o homem para ser completo e realizável precisa de liberdade e de livre acesso à cultura.”

 

 

* M. Túlio Cícero,”Em defesa do poeta Árquias”, Editorial Inquérito, Lisboa

 

[Texto publicado no jornal "A Guarda" de 20.01.2011]

VERGILIO FERREIRA

 

[http://corcoise.blogspot.com/2009/03/happy-birthday-vergilio-ferreira.html]

 

"Quanto maior se é, mais repetido se é. Platão, Aristóteles, Kant, quantos outros. Ainda se não calaram nos que deles falaram. E é possível que só se calem quando a espécie humana se calar."


"Quais são as tuas palavras essenciais? As que restam depois de toda a tua agitação e projectos e realizações. As que esperam que tudo em si se cale para elas se ouvirem. As que talvez ignores por nunca as teres pensado. As que podem sobreviver quando o grande silêncio se avizinha."


"Há os livros que antes de lidos já estão lidos. Há os que se lêem todos e ficam logo lidos todos. E há os que nos regateiam a leitura e que pedimos humildemente que se deixem ler todos e não deixam e vão largando uma parte de si pelas gerações e jamais se deixam ler de uma vez para sempre."

 

"Escrever"

 

[Faria hoje anos e a BMEL promoveu uma tertúlia em que intervieram o Dr. Alípio de Melo e o Dr. Jorge Costa Lopes (publicou recentemente "As polémicas de Vergílio Ferreira"); aprenderam-se algumas coisas sobre o autor e recordaram-se textos.]

Veio Ter Comigo Hoje a Poesia

 

Veio ter comigo hoje a poesia.
Há quantos anos? Desde a juventude.
Veio num raio de sol, num murmúrio de vento.
E a ilusão que me trouxe de uma antiga alegria
reinventou-me a antiga plenitude
que já não invento.

Fazia-lhe outrora poemas verdadeiros
em fornicações rápidas de galo.
Hoje não sou eu nunca por inteiro
e há sempre no que faço um intervalo.

Estamos ambos tão velhos — que vens fazer?
— a cama entre nós da nossa antiga função.
Nublado o olhar só de a ver.
E tomo-lhe em silêncio a mão.

Vergílio Ferreira, Conta-Corrente

VEM VENTO, VARRE


A José Rodrigues Miguéis


Vem vento, varre 
sonhos e mortos.  
Vem vento, varre 
medos e culpas.  
Quer seja dia, 
quer faça treva, 
varre sem pena, 
leva adiante 
paz e sossego, 
leva contigo 
nocturnas preces, 
presságios fúnebres, 
pávidos rostos 
só cobardia.

Que fique apenas
erecto e duro 
o tronco estreme 
de raiz funda.  

Leva a doçura, 
se for preciso: 
ao canto fundo 
basta o que basta.

Vem vento, varre!

Adolfo Casais Monteiro

Recordação

Eu bem sei

Que rodo em muitas esferas,

            E não sei

Por onde me levas, poesia.

 

Quando vou,

E não encontro ninguém,

  Tenho medo do que sei:

   Um filho de sua mãe

E seu pai,

Ou algum longínquo avô,

   A quem um poeta sai.

 

Será também o Deus da infância

E a árvore sagrada

De frutos proibidos,

Na fragrância

  Com que rasguei meus vestidos

          E não retirei os ninhos...

 

Enchi de rosas a terra

        E levo nas mãos espinhos.

 

Afonso Duarte

Rosas e cantigas - Afonso Duarte

Eu hei-de despedir-me desta lida, 
Rosas? - Árvores! hei-de abrir-vos covas 
E deixar-vos ainda quando novas? 
Eu posso lá morrer, terra florida!   

A palavra de adeus é a mais sentida 
Deste meu coração cheio de trovas... 
Só bens me dê o céu! eu tenho provas 
Que não há bem que pague o desta vida. 
  
E os cravos, manjerico, e limonete, 
Oh! que perfume dão às raparigas! 
Que lindos são nos seios do corpete! 

Como és, nuvem dos céus, água do mar, 
Flores que eu trato, rosas e cantigas, 
Cá, do outro mundo, me fareis voltar. 


Cai a Chuva Abandonada

Cai a chuva abandonada
à minha melancolia,
a melancolia do nada
que é tudo o que em nós se cria.

Memória estranha de outrora
não a sei e está presente.
Em mim por si se demora
e nada em mim a consente

do que me fala à razão.
Mas a razão é limite
do que tem ocasião

de negar o que me fite
de onde é a minha mansão
que é mansão no sem-limite.
Ao longe e ao alto é que estou
e só daí é que sou.

Vergílio Ferreira, Conta-Corrente

Tributo a uma mulher!

Essa mulher simples por mim querida

humanamente santa e generosa,

essa senhora tão maravilhosa,

horizonte e fonte da minha vida...

 

Bela como a aurora,

serena como a brisa,

pronta para servir e acolher,

amar e perdoar, consolar lágrimas

e compartilhar alegrias,

ocupada com seus afazeres

dando bronca com seus sábios dizeres ...

 

Essa mulher de fé inabalável

mensageira de amor, rainha do lar,

criatura de infinito coração,

capaz de repartir migalhas de pão

e de fazer milagres com suas virtudes,

sobretudo, com seu amor incondicional.

 

Essa mulher brilhante,

estrela-guia do meu coração errante,

essa mulher conselheira e companheira

que carinhosamente chamo: MINHA MÃE!

 

Luizinho Bastos

 

[Não é nenhuma pérola literária, nem nenhum texto precioso, mas quando se fala da mãe o que importa são os sentimentos e os verdadeiros nascem da boca das crianças! A minha faz hoje 96!]

Casimiro de Brito

Entraste na casa do meu corpo,
desarrumaste as salas todas
e já não sei quem sou, onde estou.
O amor sabe. O amor é um pássaro cego
que nunca se perde no seu voo. 

 

*****

 

Não me pisem,
já não danço —
o melhor que faço
é quando descanso.
Não me louvem,
estou cansado —
o melhor que escrevo
é quando apago. 

 

 

Casimiro de Brito, Intensidades, 1995

 

[Retirados daqui: http://casimirodebrito.no.sapo.pt/portugues/index.htm]

Ave da esperança

Passo a noite a sonhar o amanhecer.
Sou a ave da esperança.
Pássaro triste que na luz do sol
Aquece as alegrias do futuro,
O tempo que há-de vir sem este muro
De silêncio e negrura
A cercá-lo de medo e de espessura
Maciça e tumular;
O tempo que há-de vir - esse desejo
Com asas, primavera e liberdade;
Tempo que ninguém há-de
Corromper
Com palavras de amor, que são a morte
Antes de se morrer.

 

Miguel Torga