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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Prémio Manuel António Pina - João Rasteiro

Labirinto

 

Agora o corpo fala de pássaros

anunciando a erosão rente à língua

o presságio que rasga o linho

o derrame da semente ao morrer.

 

Assusta-me o vidro dos olhos

esmagando-se no vértice da linha

a dormência ávida das águas

na rotação da última palavra.

 

Esta é a nudez intacta da luz

o ar na vibração do corpo

o cheiro agreste e puro da cânfora

o peso dos dedos sob o espanto.

 

 

Trata-se do vencedor do Prémio Manuel António Pina, instituído pela C. M. Guarda:

JOÃO RASTEIRO (Coimbra - Portugal, 1965). Licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos, pela Universidade de Coimbra. Poeta e ensaísta, traduziu para o português vários poemas de Harold Alvarado Tenorio, Miro Villar e Juan Carlos Garcia Hoyuelos.

[Para saber mais aqui.]

 

ESTRELA DA TARDE

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

 

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia

 

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

 

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram

 

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

 

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto

 

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!

 

José Carlos Ary dos Santos

 

 

[Pode ser ouvido aqui na voz de Carlos do Carmo:

http://www.youtube.com/watch?v=w3WYsdHhC-8&feature=player_embedded ]

Leitura

"Não lia para reavivar o desejo de uma alma diferente da que se enroscava em mim no crepúsculo ou para me juntar com felicidade às alegrias que decorriam na outra face do universo, a que nunca se vê; nem mesmo, quiçá, para ir ao encontro de outra vida; não, eu lia para poder enfrentar com sensatez e seriedade, como homem honrado, tanto o que me acontecia na vida como a ausência de Janan, uma ausência que eu sentia muito profundamente. Com a noite já avançada, quando levantava a cabeça do livro que estava a ler com um sentimento de serenidade e de equilíbrio espiritual, dava-me conta do silêncio profundo que reinava no bairro."

 

 

Orhan Pamuk, A Vida Nova, editorial presença

 

As minhas rosas

 

(10.10.10)

 

Chega aos poucos o Outono e as rosas florescem mais lentas e mais franzidas lembrando os humanos com o frio. Fica a última da série saudando a chuva que se mostrou em força e promete prolongar-se.

As almas também se desfolham aos poucos, mas mantêm a esperança!

Animais doentes

Animais doentes as palavras
Também elas
Vespas formigas cabras
De trote difícil e miúdo
Gafanhotos alerta
Pombas vomitadas pelo azul
Bichos de conta bichos que fazem de conta
Pequeníssimas pulgas uma sílaba só
Lagartos melancólicos
Estúpidas galinhas corriqueiras
Tudo tão doente tão difícil
De manejar de lançar de provocar
De reunir
De fazer viver

Ou então as orgulhosas
Palavras raras
Plumas de cores incandescentes
Altos gritos no aviário
E o branco sem uso
Imaculado
De certas aves da solidão

Para dizer
Queria palavras tão reais como chamas
E tão precárias
Palavras que vivessem só o tempo de dizer a sua parte
No discurso de fogo
Logo extintas na combustão das próximas
Palavras que não esperassem
Em sal ou em diamante
O minuto ridículo precioso raro
De sangrar a luz a gota de veneno
Cativa das entranhas ociosas.

Alexandre O'Neill

Paisagens de Inverno

 
(A Alberto Osório de Castro)

Ó meu coração, torna para traz.
Onde vais a correr desatinado?
Meus olhos incendidos que o pecado
Queimou! Volvei, longas noites de paz.

Vergam da neve os olmos dos caminhos.
A cinza arrefeceu sobre o brasido.
Noites da serra, o casebre transido...
Cismai, meus olhos, como uns velhinhos.

 
Extintas primaveras, evocai-as.
Já vai florir o pomar das macieiras.
Hemos de enfeitar os chapéus de maias.

Sossegai, esfriai, olhos febris...
Hemos de ir a cantar nas derradeiras
Ladainhas...Doces vozes senis.

 

Camilo Pessanha

Tarde de Outono

Já nem os dias de Outono são outono!

O que fica é um agreste Inverno

de dor e sofrimento persistente,

a modorra casada com o sono,

a letargia num abandono

eterno,

a solidão teimosa, insistente!

 

Para além da tarde parda

da chuva e do nevoeiro,

a melancolia, a angústia e o cansaço,

a espera daquilo que sempre tarda,

fazem um grupo pioneiro,

um ajuntamento

lerdo e baço

tornam a vida um tormento.

 

E de que adianta o meu lamento?

 

O entardecer seráforça inalterada,

simplesmente pó, cinza e nada!

 

J.M.

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