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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Algumas Coisas - Manuel A.Pina

 

 

A morte e a vida morrem
e sob a sua eternidade fica
só a memória do esquecimento de tudo;
também o silêncio de aquele que fala se calará.

Quem fala de estas
coisas e de falar de elas
foge para o puro esquecimento
fora da cabeça e de si.

O que existe falta
sob a eternidade;
saber é esquecer, e
esta é a sabedoria e o esquecimento.

"Aquele que Quer Morrer"

Viver sempre também cansa

 

Viver sempre também cansa!

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens não se transformam
Não cai neve vermelha
Não há flores que voem,
A lua não tem olhos
Niguém vai pintar olhos à lua

Tudo é igual, mecanico e exacto

Ainda por cima os homens são os homens
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis sempre os mesmos
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe
automóveis de corrida...

E obrigam-me a viver até à morte!

Pois não era mais humano
Morrer por um bocadinho
De vez em quando
E recomeçar depois
Achando tudo mais novo?

Ah! Se eu podesse suicidar-me por seis meses
Morrer em cima dum divã
Com a cabeça sobre uma almofada
Confiante e sereno por saber
Que tu velavas, meu amor do norte.

Quando viessem perguntar por mim
Havias de dizer com teu sorriso
Onde arde um coração em melodia
Matou-se esta manhã
Agora não o vou ressuscitar
Por uma bagatela

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo..

 

 

José Gomes Ferreira

 

Desencanto - Manuel Bandeira

 

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.

Couto Viana, João Aguiar e Saramago

A memória das palavras

 

Viana, Aguiar e Saramago

Junho foi um mês que nos roubou algumas figuras das letras e de proa da literatura portuguesa. Cada um à sua maneira marcou a época com as suas obras e as suas ideias sobre o modo de entender as coisas e de ver as pessoas e o mundo.

1. António Manuel Couto Viana

O poeta, contista, ensaísta, actor, dramaturgo, encenador e figurinista tinha 87 anos, nasceu em Viana do Castelo e faleceu no passado dia 8 de Junho. Fez os seus estudos em Viana do Castelo, Braga e Lisboa e desde cedo revelou o seu interesse para e pelo teatro, começando por colaborar no Teatro Estúdio do Salitre como actor, cenógrafo e encenador. Dirigiu outros teatros e a Companhia Nacional de Teatro. Foi actor, encenador e mestre de arte de dizer e de representar, colaborando também com a Televisão para a qual fez alguns programas. Estreou-se em 1948 na poesia com o título Avestruz Lírico integrando-se no grupo Távola Redonda e colaborando na revista Graal. Com a sua poesia integrou-se no grupo de autores que se opôs ao neo-realismo através da opção pelo culto do passado, da paisagem e dos amores “ingénuos”. Como disse José Jorge Letria por alturas da sua morte foi um homem «cioso do detalhe, que trabalhou a memória da poesia e foi um poeta de grande mérito que voltou a ter destaque na última década e meia, porque o seu percurso foi sempre discreto por razões ideológicas, por ser um homem de direita». Os seus poemas estão traduzidos em espanhol e em inglês e recebeu várias distinções pela sua obra: Prémio Antero de Quental, Prémio Nacional de Poesia, Prémio Fundação Oriente, Prémio Academia das Ciências de Lisboa e Prémio de Poesia Luso-Galaica.
Nos últimos anos, voltou à ribalta das letras com dois livros de contos, “Os Despautérios do Padre Libório” e “Que é que eu Tenho Maria Arnalda?” e o livro de poemas “Ainda não”.

2. João Aguiar

Faleceu no dia 3 de Junho, em Lisboa, este jornalista e escritor ligado à recuperação do romance histórico deixando-nos vários romances, entre outros, A Voz dos Deuses, O Homem Sem Nome, Os Comedores de Pérolas, A Catedral Verde ou O Jardim das Delícias. Frequentou os Cursos Superiores de Direito e Filosofia em Lisboa e tirou Jornalismo em Bruxelas, onde deitou mão a vários trabalhos, como lavar escadas. A ânsia da escrita “nasceu-lhe” na infância quando a mãe o ensinou a ler para o manter sossegado na cama devido a doença. No entanto, só aos quarenta anos publicou o primeiro romance, “A voz dos deuses”, ficção centrada na figura de Viriato. Seguiram-se outras obras sobre figuras históricas como Sertório, passando mais tarde a localizar as suas narrativas em Macau, caso de “Os comedores de pérolas” e “O dragão de fumo”. Também a literatura infanto-juvenil lhe despertou a atenção, não só pela colaboração na tradução/adaptação da série “Rua Sésamo”, como também pela criação das séries “Sebastião e os Mundos Secretos” e o “Bando dos Quatro”. A paixão pelo jornalismo sempre o acompanhou e nela nasceu provavelmente o gosto pela narrativa histórica e pela sua escrita corrente e fluida. Na sua autobiografia e utilizando a ironia que usava tão bem, escreveu: “A minha vida não dava um livro, e ainda bem. Em compensação, o facto de os meus livros darem uma vida — boa ou má, não importa para o caso - , esse facto devo-o, em grande parte, aos momentos meus de não-glória.” (“Jornal de Letras” em 2005) O Presidente da Sociedade Portuguesa de Autores ao lembrar a sua morte referiu: “Trata-se de uma grande perda no plano literário e cultural. O João Aguiar era um grande escritor, dos mais importantes das últimas décadas em Portugal, com uma obra reconhecida pela crítica e pelo público, era um escritor profissional, com muitas edições dos vários livros que publicou, era um escritor de êxito. Era um homem de uma grande exigência, uma grande capacidade de trabalho, de uma grande seriedade intelectual e também um homem de princípios muito fortes e também com uma ligação muito forte e intensa com Portugal, a sua memória e os seus valores”. Os seus livros encontram-se traduzidos em Espanha, Itália, Alemanha e na Bulgária.

3. José Saramago

A 18 de Junho faleceu, em Lanzarote, este escritor, argumentista, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta português. Conhecido do grande público a partir da década de oitenta deixou o jornalismo por essa altura para se dedicar em exclusividade à escrita. Cultivou a narrativa com incursões várias pela história sob o ponto de vista da ideologia que sempre professou: a força do povo. Nesta linha, o seu mais célebre romance “O Memorial do Convento”, destaca como personagem colectiva o povo trabalhador, requisitado à força para as obras de construção do convento de Mafra e sem a qual ela não teria sido possível. Claro que a visão saramaguiana da História é um pouco redutora, eivada de uma ironia constante, especialmente no que diz respeito à importância e ao papel da Igreja. Essa atitude valeu-lhe o confronto aberto com a mesma Igreja e com outras instituições eivadas de valores ligados ao personalismo cristão. Mas como referiu o Padre José Tolentino, diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura da Conferência Episcopal Portuguesa: “Sem dúvida, a acusação que Saramago faz ao cristianismo é muito mais ao institucional, ao poder histórico, do que propriamente ao cristianimo messiânico de Jesus de Nazaré”
Polémicas à parte, Saramago foi um pioneiro no mundo da escrita e esse papel é incontestável: criou um estilo próprio que o levou a ser conhecido no mundo inteiro e que lhe valeu a atribuição do Prémio Camões, em 1995, e do Prémio Nobel da Literatura, em 1998. A sua morte é uma perda para a cultura portuguesa porque como lembra Carlos Reis: “Com José Saramago” desaparece não apenas um grande escritor português, mas sobretudo um enorme escritor universal”. Já Eduardo Lourenço afirma que Saramago “imaginou uma arquitectura romanesca que é uma espécie de inversão de signo da tradição mais canónica das nossas letras, construiu um mundo ao revés, que era, para ele, o mundo às direitas, reviu a história de Portugal e da Península – a história dos árabes que poderíamos ter sido –, e reviu a história da modernidade numa espécie de apocalipse.” (Público, 18.06.2010) Os seus livros estão praticamente traduzidos em todo o mundo.

 [Texto publicado a 08.07, no jornal "A Guarda"]

POEMAS DE AMOR E MELODIA - CRISTINO CORTES (recensão -PraçaVelha, nº27)

Poemas de amor e melodia, Cristino Cortes

 

“Há poetas que quase naturalmente nos vão servir para

Imitar, …”

(Poetas em negativo I, p. 79)

“E um poema basta, pode dar a medida que persiste.”

(Poetas em negativo II, p. 80)

 

    Os poemas novos deste livro confirmam aquilo que já sabíamos do autor: a sua poesia é adulta e exprime uma sábia simbiose entre o clássico e o moderno. Podemos mesmo arriscar que são estas as duas principais marcas destes poemas.

    Assim, em primeiro lugar, em quase todos eles encontramos influências dos grandes poetas nacionais no plano temático. Se nalguns poemas essa influência vem explícita nas dedicatórias iniciais, noutros ela aparece dispersa ao longo do desenvolvimento dos temas em si. No primeiro caso, encontramos referências a Jorge de Sena (p.23), Vitorino Nemésio (p. 66 e 67), Ruy Belo (p.29), Herberto Hélder (46), Augusto Gil (p. 80), Sá-Carneiro (p.73), Fernando Pessoa(p. 88), etc..  Ora esta enumeração vem confirmar as intertextualidades patentes ao longo de todo o livro com autores da nossa literatura. Mas, como referimos acima, há outros poemas cujos versos nos lembram indirectamente esses clássicos, como é o caso do poema “Do amor adulto” (p.21), onde é visível a presença de Camões. Ou então aqueles onde sentimos a presença de Pessoa e seus heterónimos (que é aliás o autor mais frequentemente encontrado): por exemplo no poema “Jamais” (p. 71), logo o primeiro verso nos remete para Ricardo Reis – “Jamais dão os inocentes deuses seja o que for” – e para a sua filosofia estóica; ou no poema “Ode vespertina” onde há uma referência explícita ao heterónimo pessoano logo a abrir – “Meu bom Ricardo Reis na tua companhia” – passando a tratar o carpe diem tão ao gosto ricardiano; podemos referir ainda o poema “Ode à Cafeína” (p. 30)  cujo título nos remete para Álvaro de Campos e em que o estilo utilizado é precisamente o esfusiante torrencial do engenheiro naval.

    A faceta clássica pode também ser observada na parte formal. Nas estrofes, o autor usa a regularidade com preferência pela quadra complementada muitas vezes com o dístico a terminar os poemas e, como noutros livros, amiúde encontramos o soneto shakespeariano. Já em relação ao verso, a frequência maior é de versos longos quer decassílabos, quer alexandrinos o que permite poemas reflexivos e narrativos, alternando com poemas de versos octossílabos mais leves e mais modernos também. De salientar ainda, na parte formal, a utilização da rima um pouco de modo intermitente e variando entre a consoante e a toante, como podemos observar na primeira quadra do poema “A beleza feminina II” (p.17): a rima entre o primeiro e o quarto versos é toante – tonalidade / tarde – enquanto que a do segundo e terceiro versos é consoante. Encontramos também rimas em eco ou internas [intervaladas / espaçadas – verso 2 do poema “O fim do Verão” (p. 52)] ou mesmo rima encadeada – dão / infracção: fim do verso 3 e meio do verso 4 da segunda estrofe ( poema da página 46).

    Em segundo lugar, a poesia deste livro é moderna, não só porque radica na contemporaneidade, mas porque gere as influências recebidas com estilo próprio onde se destacam a espontaneidade, a oralidade e o quotidiano. Já acima referimos a “Ode à cafeína” (p. 30) cujo tema é evidentemente moderno e porque retrata no estilo o frenético efeito da mesma; ou a actualidade do “Solta e livre a imaginação” (p. 36); ou o quotidiano de “Delícias de pai” (p. 41), “Melancólico moralista” (p. 43), “Segunda-feira” (p. 51) e tantos outros. Embora não sendo algo moderno, destaca-se também a presença da ironia que perpassa em muitos versos e que é um topos da poesia portuguesa em geral, mas que Garrett reforçou na modernidade poética nacional: por exemplo no poema “O tema do namorado” (p. 14) aquele “colofon” dos últimos sete versos é delicioso na suave ironia que nos lembra o pícaro Veloso de “Os Lusíadas”. Podíamos ainda referir a espontaneidade e naturalidade quer do dístico final do “Do Amor adulto I” (p. 20), quer do “Quem dormir na minha cama” (p. 24) e reforçar a reflexão valorativa do “Os filhos da televisão” (p. 75).

    Retomando o início e à laia de conclusão, diríamos que os poemas quer reeditados quer novos deste livro vêm confirmar a poética exímia deste autor misturando com mestria o clássico retomado e o moderno vivido. E é esta conjunção de duas forças aparentemente antagónicas, mas que afinal se complementam que reside a grandeza desta poesia “firme, fértil e universalista” no dizer crítico de João Barroso da Fonte.

 

 

Guarda, 17 de Novembro de 2009

José Monteiro