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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

A cruz mutilada (3)

Ó Lua silenciosa,
Que em perpétuo volver. seguindo a Terra,
Esparzes tua luz ameigadora
Pela serra formosa,
E pelos lagos que em seu seio encerra,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.

 

Debalde o servo ingrato
No pó te derribou
E os restos te insultou,
Ó veneranda cruz:

 

Embora eu te não veja
Neste ermo pedestal;
És santa, és imortal;

Tu és a minha luz!

 

Nas almas generosas
Gravou-te a mão de Deus,
E, à noite, fez nos céus
Teu vulto cintilar.

 

Os raios das estrelas
Cruzam o seu fulgor;
Nas horas do furor
As vagas cruza o mar.

 

Os ramos enlaçados
Do roble, choupo e til
Cruzando em modos mil,
Se vão entretecer.

 

Ferido, abre o guerreiro
Os braços, solta um ai,
Pára, vacila, e cai
Para não mais se erguer.

 

Cruzado aperta ao seio
A mãe o filho seu,
Que busca, mal nasceu,
Fontes da vida e amor.

 

Surges; símbolo eterno,
No Céu, na Terra e mar,
Do forte no expirar,
E do viver no alvor!

 

Alexandre Herculano

A cruz mutilada (2)

E eu te encontrei, num alcantil agreste,
Meia quebrada, ó cruz! Sozinha estavas
Ao pôr do Sol, e ao elevar-se a Lua
Detrás do calvo cerro. A soledade
Não te pôde valer contra a mão ímpia,
Que te feriu sem dó. As linhas puras
De teu perfil, falhadas, tortuosas,
Ó mutilada cruz, falam de um crime
Sacrílego, brutal e ao ímpio inútil!
A tua sombra estampa-se no solo,
Como a sombra de antigo monumento,
Que o tempo quase derrocou, truncada.
No pedestal musgoso, em que te ergueram
Nossos avós, eu me assentei. Ao longe,
Do presbitério rústico mandava
O sino os simples sons pelas quebradas
Da cordilheira, anunciando o instante
Da ave-maria; da oração singela,
Mas solene, mas santa, em que a voz do homem
Se mistura nos cânticos saudosos,
Que a natureza envia ao Céu no extremo
Raio de sol, pasmado fugitivo
Na tangente deste orbe, ao qual trouxeste
Liberdade e progresso, e que te paga
Com a injúria e o desprezo, e que te inveja
Até, na solidão, o esquecimento!

 

Alexandre Herculano

ELE HÁ TANTA MULHER ...

Ele há tanta mulher! mas por que fantasia
Entre tantas, só uma a nossa simpatia
Distingue, escolhe e quer! Uma só avassala,
Nos dulcifica o olhar e nos perturba a fala!
Quando ela passa, o ar tem um perfume casto,
Embriaga o sorrir! Quando nos olha, o vasto
Campo negro do céu, cheio de tanta estrela,
Nenhuma tem, com luz,que imite os olhos dela!
Em tudo nos parece extraordinário ser:
Na graça do andar, no mimo do dizer;
Tudo nela é tão bom, tão engraçado, ilude,
Que a própria imperfeição transforma-se em virtude!
Quando aparece, a alma alegra-se, tão cheia
De luz,como ao domingo o adro duma aldeia!
Quando foge, se afasta, o nosso pensamento
Vai atrás dela louco e carinhoso e atento,
A recordar-lhe o ar, a graça, o todo belo,
O som da sua voz, a cor do seu cabelo,
O que empresta à saudade essa doce tortura...
Quando ela chora, ó céus! que hórrida amargura!
É como se o mar todo, em lágrimas desfeito,
Caísse,sem cessar,dentro do nosso peito!
Ele há tanta mulher! mas por que fantasia
Entre tantas só uma a nossa simpatia
Distingue, escolhe e quer!

 

Marcelino Mesquita

A CRUZ MUTILADA

A poesia de Alexandre Herculano é radicada nos salmos bíblicos, em grande parte, pois os românticos eram profundamente religiosos - lembremos Garrett na célebre afirmação: "Cristão sou e cristãos versos faço!" - daí que a temática fundamental de Herculano, na sua obra poética, seja de cariz religioso. Como estamos na Semana Maior ou Santa" deixo aqui alguns poemas nessa linha. 

 

A CRUZ MUTILADA

 

Amo-te, ó cruz, no vértice, firmada
De esplêndidas igrejas;
Amo-te quando à noite, sobre a campa,
Junto ao cipreste alvejas;
Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,
As preces te rodeiam;
Amo-te quando em préstito festivo
As multidões te hasteiam;
Amo-te erguida no cruzeiro antigo,
No adro do presbitério,
Ou quando o morto, impressa no ataúde,
Guias ao cemitério;
Amo-te, ó cruz, até, quando no vale
Negrejas triste e só,
Núncia do crime, a que deveu a terra
Do assassinado o pó:

 

Porém quando mais te amo,
Ó cruz do meu Senhor,
É, se te encontro à tarde,
Antes de o Sol se pôr,

 

Na clareira da serra,
Que o arvoredo assombra,
Quando à luz que fenece
Se estira a tua sombra,

 

E o dia últimos raios
Com o luar mistura,
E o seu hino da tarde
O pinheiral murmura.

 

Alexandre Herculano

BICENTENÁRIO - ALEXANDRE HERCULANO

Faz hoje 200 anos que nasceu este grande romântico português, como já tinha lembrado há dias. Nas suas andanças pelo país fez uma breve paragem pelas nossas terras. As impressões aí ficam:

 

[1853] 

Agosto 22 - Saímos às seis horas para a Guarda a três léguas. (...) Ao lado da Faia a estrada volta à esquerda e começa a subir a montanha: passa-se pela Ramalhosa a pouca altura: pomares e olivedos bem tratados: começa a encosta a tornar-se calva: a estrada arruinada em partes, calçada com grandes pedras parece bem lançada: entrada na Guarda. 

[1853] 

Agosto 23 a 26 - Guarda povoação insignificante como cidade: muralhas meio demolidas: apenas duas torres na cerca e uma que parece ser a de menagem e no sítio onde devia ser a Alcáçova: a fortificação parece dos fins do XIV ou princípios do XV séc. A Sé: estado do arquivo da Sé. O edifício da época joanina: semelhança das linhas arquitectónicas interiores com as da Batalha: necessidade de demolir as obras exteriores modernas e estúpidas para reduzir este monumento, a mais bela igreja da Beira, ao desenho primitivo. Os guardas do tabaco: parecem uma quadrilha de ladrões: violências deles contra o povo e do povo contra eles. O clima da Guarda: o dia 24 de Agosto semelhante a um dia sereno de Fevereiro. Espectáculo no dia 25 de uma trovoada medonha correndo ao longo do Cimacoa. Ventania e frio na tarde de 26. Aridez e pedregoso por todos os lados da cidade: ao baixo vales férteis. 

[1853]

Agosto 27 - Saída da Guarda: seguimos o dorso da serra: à direita num vale a aldeia de Maçainhas que parece populosa: caminhos ásperos e agrestes.

[in Cenas de um ano da minha vida, Apontamento de Viagem, Círculo de Leitores, 1987, págs. 138-139.]

(Retirado, com a devida vénia, de “Guarda Livros - textos e contextos”, selecção e organização de António José Dias de Almeida, edição da Câmara Municipal da Guarda, 2004.)

 

 

[É um autor esquecido pelo poder e isso mesmo lembra a imprensa dos últimos dias de que destaco:

http://jn.sapo.pt/PaginaInicial/Cultura/Interior.aspx?content_id=1528479 ou http://jn.sapo.pt/Domingo/Interior.aspx?content_id=1530191]

 

A Voz (Bicentenário - Alexandre Herculano)



É tão suave ess'hora,
Em que nos foge o dia,
E em que suscita a Lua
Das ondas a ardentia,

Se em alcantis marinhos,
Nas rochas assentado,
O trovador medita
Em sonhos enteado!

O mar azul se encrespa
Coa vespertina brisa,
E no casal da serra
A luz já se divisa.

E tudo em roda cala
Na praia sinuosa,
Salvo o som do remanso
Quebrando em furna algosa.

Ali folga o poeta
Nos desvarios seus,
E nessa paz que o cerca
Bendiz a mão de Deus.

Mas despregou seu grito
A alcíone gemente,
E nuvem pequenina
Ergueu-se no ocidente:

E sobe, e cresce, e imensa
Nos céus negra flutua,
E o vento das procelas
Já varre a fraga nua.

Turba-se o vasto oceano.
Com hórrido clamor;
Dos vagalhões nas ribas
Expira o vão furor

E do poeta a fronte
Cobriu véu de tristeza;
Calou, à luz do raio,
Seu hino à natureza.

Pela alma lhe vagava
Um negro pensamento,
Da alcíone ao gemido,
Ao sibilar do vento.

Era blasfema ideia,
Que triunfava enfim;
Mas voz soou ignota,
Que lhe dizia assim:

«Cantor, esse queixume
Da núncia das procelas,
E as nuvens, que te roubam
Miríades de estrelas,

E o frémito dos euros,
E o estourar da vaga,
Na praia, que revolve,
Na rocha, onde se esmaga,

Onde espalhava a brisa
Sussurro harmonioso,
Enquanto do éter puro
Descia o Sol radioso,

Tipo da vida do homem,
É do universo a vida:
Depois do afã repouso,
Depois da paz a lida.

Se ergueste a Deus um hino
Em dias de amargura;
Se te amostraste grato
Nos dias de ventura,

Seu nome não maldigas
Quando se turba o mar:
No Deus, que é pai, confia,
Do raio ao cintilar.

Ele o mandou: a causa
Disso o universo ignora,
E mudo está. O nume,
Como o universo, adora!»

Oh, sim, torva blasfémia
Não manchará seu canto!
Brama a procela embora;
Pese sobre ele o espanto;

Que de sua harpa os hinos
Derramará contente
Aos pés de Deus, qual óleo
Do nardo recendente.

 

A HARPA DO CRENTE

ALEXANDRE HERCULANO

No dia 28 de Março, faz 200 anos que nasceu esse grande escritor romântico que foi Alexandre Herculano. Pelo vistos o bicentenário vai passar sem grande alarido na comunicação social porque, além do mais, está praticamente esquecido não só porque foi um perito na utilização do bom português, como também foi um HOMEM de ideias e ideais que defendeu acerrimamente. Como é óbvio pessoas desta estirpe são hoje ignoradas.

Para assinalar a efeméride passarei a recordar a sua obra nos próximos tempos. Começo hoje pelo poeta.

 

A GRAÇA

 

Que harmonia suave
É esta, que na mente
Eu sinto murmurar,
Ora profunda e grave,
Ora meiga e cadente,
Ora que faz chorar?


Porque da morte a sombra,
Que para mim em tudo
Negra se reproduz,
Se aclara, e desassombra
Seu gesto carrancudo,
Banhada em branda luz?


Porque no coração
Não sinto pesar tanto
O férreo pé da dor,
E o hino da oração,
Em vez de irado canto,
Me pede íntimo ardor?

 

És tu, meu anjo, cuja voz divina
Vem consolar a solidão do enfermo,
E a contemplar com placidez o ensina
De curta vida o derradeiro termo?

 

Oh, sim!, és tu, que na infantil idade,.
Da aurora à frouxa luz,
Me dizias: «Acorda, inocentinho,
Faz o sinal da Cruz.»


És tu, que eu via em sonhos, nesses anos
De inda puro sonhar,
Em nuvem d'ouro e púrpura descendo
Coas roupas a alvejar.


És tu, és tu!, que ao pôr do Sol, na veiga,
Junto ao bosque fremente,
Me contavas mistérios, harmonias
Dos Céus, do mar dormente.


És tu, és tu!, que, lá, nesta alma absorta
Modulavas o canto,
Que de noite, ao luar, sozinho erguia
Ao Deus três vezes santo.


És tu, que eu esqueci na idade ardente
Das paixões juvenis,
E que voltas a mim, sincero amigo,
Quando sou infeliz.


Sinta a tua voz de novo,
Que me revoca a Deus:
Inspira-me a esperança,
Que te seguiu dos Céus!...

 

 

 

...

 

Sentado na mesa do café devasso

Olho a paisagem vestida a verde

Extasiam-se-me os olhos no poente,

E revejo a tua Milady, ó Cesário Verde!,

 

Sem desprimor para a airosa rapariga

Portuguesa de lei e bem elegante

Que passa simples e descontraída

No seu fato de treino desestressante.

 

Ao longe, as eólicas lutam desesperadas

Contra a força intensa do frio norte

E as árvores, nesta altura, desfolhadas

Agitam os ramos perdido já o porte.

 

E vêem-me à memória uns dias estivais

Cheios de emoções e passeio matutino

Intensos, secos, avessos a vendavais

Iludindo a força secreta do fatal destino.

 

Triste condição humana: efemeridade!

Tudo é passageiro e fugaz e inexorável!

Sensações enganadoras de felicidade!

Ilusões perdidas de uma vida: lamentável!

 

(Sorriso cúmplice de mãe e filha

Que termina em sonora gargalhada,

Foi uma pequena maravilha

Iluminando a tarde enevoada!)

 

JM - 16.03.2010

INSPIRAÇÃO

Li o teu poema oblíquo de chuva, ó poeta!

e, nas asas do irreal,

parti deslizando

p'lo infinito aberto da tua poesia.

Imerso na densidade do porto,

passei de cor as velas da razão:

nos vultos das árvores banhei-me de sol

e nas águas sombrias de perfeição.

Enlevei-me no sonho que me deste

e, nos versos que geraste,

vi o cais lamacento

da vertical humanidade derrubada.

Quis-me fingidor a teu lado

mas escorreguei na lama do cais,

onde o Estio grita revoltado

a liberdade perdida jamais.

Passando de través pela rua

doirei a perfeição palpitante,

nas pedras da fresca calçada

onde a vontade rastejava delirante.

 

Senti.

 

Um laivo de génio passou.

Da minha voz - quase nada -

saiu este grito de mim.

 

JM, "Palavras Nossas", Escola Sec. da Sé - 1991

 

 

[Nas arrumações sazonais destes dias, encontrei este poema do século passado e que também saiu no Público na escola de Outubro de 1992.]

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