Ó Lua silenciosa, Que em perpétuo volver. seguindo a Terra, Esparzes tua luz ameigadora Pela serra formosa, E pelos lagos que em seu seio encerra, Em ti minha alma a eterna cruz adora.
Debalde o servo ingrato No pó te derribou E os restos te insultou, Ó veneranda cruz:
Embora eu te não veja Neste ermo pedestal; És santa, és imortal;
Tu és a minha luz!
Nas almas generosas Gravou-te a mão de Deus, E, à noite, fez nos céus Teu vulto cintilar.
Os raios das estrelas Cruzam o seu fulgor; Nas horas do furor As vagas cruza o mar.
Os ramos enlaçados Do roble, choupo e til Cruzando em modos mil, Se vão entretecer.
Ferido, abre o guerreiro Os braços, solta um ai, Pára, vacila, e cai Para não mais se erguer.
Cruzado aperta ao seio A mãe o filho seu, Que busca, mal nasceu, Fontes da vida e amor.
Surges; símbolo eterno, No Céu, na Terra e mar, Do forte no expirar, E do viver no alvor!
E eu te encontrei, num alcantil agreste, Meia quebrada, ó cruz! Sozinha estavas Ao pôr do Sol, e ao elevar-se a Lua Detrás do calvo cerro. A soledade Não te pôde valer contra a mão ímpia, Que te feriu sem dó. As linhas puras De teu perfil, falhadas, tortuosas, Ó mutilada cruz, falam de um crime Sacrílego, brutal e ao ímpio inútil! A tua sombra estampa-se no solo, Como a sombra de antigo monumento, Que o tempo quase derrocou, truncada. No pedestal musgoso, em que te ergueram Nossos avós, eu me assentei. Ao longe, Do presbitério rústico mandava O sino os simples sons pelas quebradas Da cordilheira, anunciando o instante Da ave-maria; da oração singela, Mas solene, mas santa, em que a voz do homem Se mistura nos cânticos saudosos, Que a natureza envia ao Céu no extremo Raio de sol, pasmado fugitivo Na tangente deste orbe, ao qual trouxeste Liberdade e progresso, e que te paga Com a injúria e o desprezo, e que te inveja Até, na solidão, o esquecimento!
Ele há tanta mulher! mas por que fantasia Entre tantas, só uma a nossa simpatia Distingue, escolhe e quer! Uma só avassala, Nos dulcifica o olhar e nos perturba a fala! Quando ela passa, o ar tem um perfume casto, Embriaga o sorrir! Quando nos olha, o vasto Campo negro do céu, cheio de tanta estrela, Nenhuma tem, com luz,que imite os olhos dela! Em tudo nos parece extraordinário ser: Na graça do andar, no mimo do dizer; Tudo nela é tão bom, tão engraçado, ilude, Que a própria imperfeição transforma-se em virtude! Quando aparece, a alma alegra-se, tão cheia De luz,como ao domingo o adro duma aldeia! Quando foge, se afasta, o nosso pensamento Vai atrás dela louco e carinhoso e atento, A recordar-lhe o ar, a graça, o todo belo, O som da sua voz, a cor do seu cabelo, O que empresta à saudade essa doce tortura... Quando ela chora, ó céus! que hórrida amargura! É como se o mar todo, em lágrimas desfeito, Caísse,sem cessar,dentro do nosso peito! Ele há tanta mulher! mas por que fantasia Entre tantas só uma a nossa simpatia Distingue, escolhe e quer!
A poesia de Alexandre Herculano é radicada nos salmos bíblicos, em grande parte, pois os românticos eram profundamente religiosos - lembremos Garrett na célebre afirmação: "Cristão sou e cristãos versos faço!" - daí que a temática fundamental de Herculano, na sua obra poética, seja de cariz religioso. Como estamos na Semana Maior ou Santa" deixo aqui alguns poemas nessa linha.
A CRUZ MUTILADA
Amo-te, ó cruz, no vértice, firmada De esplêndidas igrejas; Amo-te quando à noite, sobre a campa, Junto ao cipreste alvejas; Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos, As preces te rodeiam; Amo-te quando em préstito festivo As multidões te hasteiam; Amo-te erguida no cruzeiro antigo, No adro do presbitério, Ou quando o morto, impressa no ataúde, Guias ao cemitério; Amo-te, ó cruz, até, quando no vale Negrejas triste e só, Núncia do crime, a que deveu a terra Do assassinado o pó:
Porém quando mais te amo, Ó cruz do meu Senhor, É, se te encontro à tarde, Antes de o Sol se pôr,
Na clareira da serra, Que o arvoredo assombra, Quando à luz que fenece Se estira a tua sombra,
E o dia últimos raios Com o luar mistura, E o seu hino da tarde O pinheiral murmura.
Faz hoje 200 anos que nasceu este grande romântico português, como já tinha lembrado há dias. Nas suas andanças pelo país fez uma breve paragem pelas nossas terras. As impressões aí ficam:
[1853]
Agosto 22 - Saímos às seis horas para a Guarda a três léguas. (...) Ao lado da Faia a estrada volta à esquerda e começa a subir a montanha: passa-se pela Ramalhosa a pouca altura: pomares e olivedos bem tratados: começa a encosta a tornar-se calva: a estrada arruinada em partes, calçada com grandes pedras parece bem lançada: entrada na Guarda.
[1853]
Agosto 23 a 26 - Guarda povoação insignificante como cidade: muralhas meio demolidas: apenas duas torres na cerca e uma que parece ser a de menagem e no sítio onde devia ser a Alcáçova: a fortificação parece dos fins do XIV ou princípios do XV séc. A Sé: estado do arquivo da Sé. O edifício da época joanina: semelhança das linhas arquitectónicas interiores com as da Batalha: necessidade de demolir as obras exteriores modernas e estúpidas para reduzir este monumento, a mais bela igreja da Beira, ao desenho primitivo. Os guardas do tabaco: parecem uma quadrilha de ladrões: violências deles contra o povo e do povo contra eles. O clima da Guarda: o dia 24 de Agosto semelhante a um dia sereno de Fevereiro. Espectáculo no dia 25 de uma trovoada medonha correndo ao longo do Cimacoa. Ventania e frio na tarde de 26. Aridez e pedregoso por todos os lados da cidade: ao baixo vales férteis.
[1853]
Agosto 27 - Saída da Guarda: seguimos o dorso da serra: à direita num vale a aldeia de Maçainhas que parece populosa: caminhos ásperos e agrestes.
[in Cenas de um ano da minha vida, Apontamento de Viagem, Círculo de Leitores, 1987, págs. 138-139.]
(Retirado, com a devida vénia, de “Guarda Livros - textos e contextos”, selecção e organização de António José Dias de Almeida, edição da Câmara Municipal da Guarda, 2004.)
[É um autor esquecido pelo poder e isso mesmo lembra a imprensa dos últimos dias de que destaco:
"A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos."
No dia 28 de Março, faz 200 anos que nasceu esse grande escritor romântico que foi Alexandre Herculano. Pelo vistos o bicentenário vai passar sem grande alarido na comunicação social porque, além do mais, está praticamente esquecido não só porque foi um perito na utilização do bom português, como também foi um HOMEM de ideias e ideais que defendeu acerrimamente. Como é óbvio pessoas desta estirpe são hoje ignoradas.
Para assinalar a efeméride passarei a recordar a sua obra nos próximos tempos. Começo hoje pelo poeta.
A GRAÇA
Que harmonia suave É esta, que na mente Eu sinto murmurar, Ora profunda e grave, Ora meiga e cadente, Ora que faz chorar?
Porque da morte a sombra, Que para mim em tudo Negra se reproduz, Se aclara, e desassombra Seu gesto carrancudo, Banhada em branda luz?
Porque no coração Não sinto pesar tanto O férreo pé da dor, E o hino da oração, Em vez de irado canto, Me pede íntimo ardor?
És tu, meu anjo, cuja voz divina Vem consolar a solidão do enfermo, E a contemplar com placidez o ensina De curta vida o derradeiro termo?
Oh, sim!, és tu, que na infantil idade,. Da aurora à frouxa luz, Me dizias: «Acorda, inocentinho, Faz o sinal da Cruz.»
És tu, que eu via em sonhos, nesses anos De inda puro sonhar, Em nuvem d'ouro e púrpura descendo Coas roupas a alvejar.
És tu, és tu!, que ao pôr do Sol, na veiga, Junto ao bosque fremente, Me contavas mistérios, harmonias Dos Céus, do mar dormente.
És tu, és tu!, que, lá, nesta alma absorta Modulavas o canto, Que de noite, ao luar, sozinho erguia Ao Deus três vezes santo.
És tu, que eu esqueci na idade ardente Das paixões juvenis, E que voltas a mim, sincero amigo, Quando sou infeliz.
Sinta a tua voz de novo, Que me revoca a Deus: Inspira-me a esperança, Que te seguiu dos Céus!...