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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Manuel António Pina

Eu não procuro nada em ti,
nem a mim próprio, é algo em ti
que procura algo em ti
no labirinto dos meus pensamentos.

 

Eu estou entre ti e ti,
a minha vida, os meus sentidos
(principalmente os meus sentidos)
toldam de sombras o teu rosto.

 

O meu rosto não reflecte a tua imagem,
o meu silêncio não te deixa falar,
o meu corpo não deixa que se juntem
as partes dispersas de ti em mim.

 

Eu sou talvez
aquele que procuras,
e as minhas dúvidas a tua voz
chamando do fundo do meu coração.

MANUEL ANTÓNIO PINA

Café Orfeu

 
Nunca tinha caído
de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.
Regressava do teu sorriso
como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.
Fora do teu sorriso
a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.
E a que eu regressava lentamente
como se antes do teu sorriso
alguém(eu provavelmente)
nunca tivesse existido.
 
Um Sítio Onde Pousar A Cabeça(1991)

MANUEL ANTÓNIO PINA

 

 

 

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não acabarem).
Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei:
"Que fez algum poeta por este senhor?"
E a pergunta afligiu-me tanto
por dentro e por fora da cabeça que
tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
– Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? –
 
"A poesia vai acabar"
 

 

Manuel António Pina

O Resto é Silêncio ( Que Resto?)

Volto, pois, a casa. Mas a casa,
a existência, não são coisas que li?
E o que encontrarei
se não o que deixo: palavras?

Eu, isto é, palavras falando,
e falando me perdendo
entre estando e sendo.
Alguma vez, quando

havia começo
e não inércia,
quando era cedo
e não parecia,

as minhas palavras puderam estar
onde sempre estiveram:
no apavorado lugar
onde sou silêncio.

 

"Poesia Reunida"


Oiço:  http://www.youtube.com/watch?v=OpExb2hCYTs

 

MÃE

Para Sempre, Carlos Drummond de Andrade 

 

 

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
— mistério profundo —
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho. 

'Lição de Coisas'

 

[Nos 95 anos da minha mãe: oxalá pudesse também eu promulgar a lei de que fala o poeta, "Mãe não morre nunca!"]

Recordo ainda ...

Recordo ainda...
E nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa.
Que deixavam, sempre,de lembrança,
algum brinquedo novo à minha porta...
Mas veio um vento de desesperança...
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta.
Todos os meus brinquedos de criança...
Estrada afora após segui...
Mas,aí,
Embora idade e senso eu aparente,
não vos iluda o velho que aqui vai:
eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino...
Acreditai!
Que envelheceu um dia de repente".

Mário Quintana (poeta brasileiro)

Amor como em Casa - Manuel António Pina

 

 

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

"Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma é Apenas um Pouco Tarde"