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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Se eu morrer novo

Se eu morrer novo,
Sem poder publicar livro nenhum,
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.
 

Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

 

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

 

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva —
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo (E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.

 

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão —
Porque não tinha que ser.

 

Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído.

 

 

 

Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos

810 anos - José Augusto de Castro

 

PERTO DO CÉU

Quando a primeira vez a vi, lá cima,

- a mais alta de todas as cidades -

senti não sei que doces ansiedades,

das quais nossa alma se ilumina e anima.

Esbocei versos, procurei a rima,

para falar da Gloria e das Idades...

E tomavam-me sonhos e vaidades,

vendo-a como de Deus uma obra prima!

Guarda! Fiquei-me a vê-la...No horisonte

erguia-se o Castelo - sobre o monte -,

torres e coruchéus da Catedral...

Outras terras mais lindas ha, de-certo...

Porem nenhuma fica assim tão perto

do puro azul do céu de Portugal!

 

"Terra sagrada - Guarda" 1932

 

 

Soneto camoniano - Cristino Cortes

(I)

 

Mudam-se os tempos mudam-se as vontades
Permanecem os problemas e as confusões
- Jamais um homem se perdeu nas multidões
O vão propósito jamais ergueu uma cidade!

 

Todos os meses há chatices coisas certas
Para um dinheiro visivelmente minguante;
Desculpem-me o facto comezinho e rastejante
Possa Camões perdoar estas musas e suas ofertas!

 

Mas é este um canto nobre e digno, e até ver
Também aqui a pressão do concreto queima a asa
De quem teve um grande sonho mas ficou em casa

- Não se perdeu, ainda não, o hábito de comer!


Mudam-se os tempos e às vezes as vontades mudam
Só o homem permanece – e as questões que o animam.

 

(in “CRONOLOGIA e outros poemas”)

MINIMAMENTE

  Se o teatro é vida, a vida é um teatro. Comédia, tragédia, se calhar, a maior parte das vezes tragicomédia. Estereotipos de vidas avulsas com a finalidade - já o dizia Aristóteles - de fazer esquecer as desgraças, com uma função catártica. Seis actores em palco percorrendo vidas avulsas algures na Alemanha que também pode ser a Guarda. Estiveram bem e o maior elogio e a maior ovação - eles não se aperceberam - foi de um petiz de palmo e meio, logo na fila B, que se riu e fez comentários fantásticos ao longo da representação: a inocência a rir-se das doideiras dos adultos! Temos grupo, vamos estar de tento no olho!

 

Lídia

Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros

Onde que quer que estejamos.

Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros

Onde quer que moremos, Tudo é alheio

Nem fala língua nossa.

Façamos de nós mesmos o retiro

Onde esconder-nos, tímidos do insulto

Do tumulto do mundo.

Que quer o amor mais que não ser dos outros?

Como um segredo dito nos mistérios,

Seja sacro por nosso.

 

Ricardo Reis

Os teus olhos - Cristino Cortes

Nos meus olhos, oh meu amor, inda transporto o brilho

Que um dia senti nos teus e só aos deuses peço
Essa memória permaneça; de tudo me despeço
Sem mágoa ou pesar de alma do que vier grato filho...
 
Nenhum véu de futuras lágrimas toldava esse encanto
Essa certeza de conseguir e toda se dar;
Para mim, aliás, se não dirigia esse olhar
Comum era o objectivo e assim lhe quero tanto
 
Falo no passado pois que esse tempo passou
Tal como muita coisa passou à face da terra;
Mas a gratidão é bálsamo que o coração me encerra
E a esse brilho jamais nenhum futuro o levou
 
Rolarão as esferas e os astros, tudo passará
E só esse brilho nos teus olhos não me esquecerá.
 
Poemas de Amor e Melodia, papiroeditora
 
 [CRISTINO CORTES nasceu em Fiães, uma pequena aldeia perto de Trancoso, em 1953.
Licenciou-se em Economia em Lisboa, cidade onde reside desde 1971.]

Solidão - Chico Buarque

Solidão não é a falta de gente para conversar, namorar, passear ou fazer sexo... Isto é carência!
Solidão não é o sentimento que experimentamos pela ausência de entes queridos que não podem mais voltar... Isto é saudade!
Solidão não é o retiro voluntário que a gente se impõe, às vezes, para realinhar os pensamentos... Isto é equilíbrio!
Solidão não é o claustro involuntário que o destino nos impõe compulsoriamente... Isto é um princípio da natureza!
Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado... Isto é circunstância!
Solidão é muito mais do que isto...
Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma.

Poema do silêncio

 

Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

 

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

 

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

 

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

 

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

 

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

 

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

 

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

 

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

 

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

 

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

 

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

 

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

 

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.

 

'As Encruzilhadas de Deus'

 

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