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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Recordar Carreira Amarelo

Um estudioso sério das coisas da Guarda cujo trabalho tem passado um pouco despercebido. Pároco da Vela e Benespera, entre outras paróquias, deixou obra feita também como Professor do IPG de mérito reconhecido. Hoje muito justamente o Dr. Helder Sequeira recorda a sua obra num artigo do jornal O Interior.

Quando eu nasci

Quando eu nasci,
ficou tudo como estava,
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...

P'ra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...

 

 

José Régio

Sabedoria

Desde que tudo me cansa,
Comecei eu a viver.
Comecei a viver sem esperança...
E venha a morte quando
Deus quiser.

Dantes, ou muito ou pouco,
Sempre esperara:
Às vezes, tanto, que o meu sonho louco
Voava das estrelas à mais rara;
Outras, tão pouco,
Que ninguém mais com tal se conformara.

Hoje, é que nada espero.
Para quê, esperar?
Sei que já nada é meu senão se o não tiver;
Se quero, é só enquanto apenas quero;
Só de longe, e secreto, é que inda posso amar...
E venha a morte quando Deus quiser.

Mas, com isto, que têm as estrelas?
Continuam brilhando, altas e belas.

 

José Régio

...

 

Uma chuva abundante cai lá fora

E tamborila insistente na janela

Lembrando que o Outono

desceu definitivamente à cidade.

As carícias suaves das brisas estivais

Foram suplantadas

pelas bruscas rajadas do sudoeste

húmido e prenunciador

do vizinho inverno agreste.

A cidade envolve-se num nevoeiro opaco

E embacia as janelas da alma

Embrulhando-a em racionalidades

Impeditivas de um olhar claro

Sobre a beleza da chuva benfazeja.

                                                (20.10.09)

 

                                          JM  

 

Perfil - Graça Pires

De passagem,

como a véspera imprecisa

do poema,

principia em mim

a planície agreste

da solidão dos outros.

E a não ser

o silêncio poente

dos meus olhos,

tudo o resto me diz

que sou um pássaro

a voar, inconsequentemente,

no sentido das palavras.

                   In Poemas

[Graça Pires nasceu em 1946 na Figueira da Foz e é licenciada em História]

 

Ode à Poesia - Miguel Torga (1946)

 

Vou de comboio...

 

Vou

Mecanizado e duro como sou
Neste dia, 
E mesmo assim tu vens, tu me visitas!
Tu ranges nestes ferros e palpitas
Dentro de mim, Poesia!

Vão homens a meu lado distraídos
Da sua condição de almas penadas;
Vão outros à janela, diluídos
Nas paisagens passadas...
E porque hei-de ter eu nos meus sentidos
As tuas formas brancas e aladas?

Os campos, imprecisos, nos meus olhos,
Vão de braços abertos às montanhas;
O mar protesta contra não sei quê;
E eu, movido por ti, por tuas manhas,
A sonhar um painel que se não vê!

Porque me tocas? Porque me destinas
Este cilício vivo de cantar?
Porque hei-de eu padecer e ter matinas
Sem sequer acordar?

Porque há-de a tua voz chamar a estrela
Onde descansa e dorme a minha lira?
Que razão te dei eu
Para que a um gesto teu
A harmonia me fira?

Poeta sou e a ti me escravizei,
Incapaz de fugir ao meu destino.
Mas, se todo me dei,
Porque não há-de haver na tua lei
O lugar do menino
Que a fazer versos e a crescer fiquei?

Tanto me apetecia agora ser
Alguém que não cantasse nem sentisse!
Alguém que visse padecer,
E não visse...

Alguém que fosse pelo dia fora
Neutro como um rapaz
Que come e bebe a cada hora
Sem saber o que faz...

Alguém que não tivesse sentimentos,
Pressentimentos,
E coisas de escrever e de exprimir...
Alguém que se deitasse
No banco mais comprido que vagasse,
E pudesse dormir...

Mas eu sei que não posso.
Sei que sou todo vosso,
Ritmos, imagens, emoções!
Sei que serve quem ama,
E que eu jurei amor à minha dama,
À mágica senhora das paixões.

Musa bela, terrível e sagrada,
Imaculada Deusa do condão:
Aqui vou de longada;
Mas aqui estou, e aqui serás louvada,
Se aqui mesmo me obriga a tua mão!

 

 

[Aos mais de 10000 que por aqui passaram: amigos, amantes da poesia, simples curiosos ou com qualquer outro estatuto, aqui fica o meu tributo / o meu obrigado através das palavras sabiamente dispostas do grande Mestre.]

 

fugaCIDADEs

Flores brancas tontas

ensaiam danças belas

na música do vento  invernal;

parece que angustiadas,

procuram um sítio para pousar

trazendo consigo estrelas

num bailado circular e infernal.

Mas a natureza receptiva

tecendo lençóis de alvura

no lugar dos negros barrocais

sempre criadora e construtiva

alumiará a nocturna negrura

com uma esplendorosa, bela e altiva

brancura espessa e ideal.

JM

 

...Que culpa terão as ondas- Reinaldo Ferreira

 

...Que culpa terão as ondas Dos movimentos que façam? São os ventos que as impelem E sulcos profundos traçam. Aos ventos quem lhes ordena Que rasguem rugas no mar? São as nuvens inquietas Que os não deixam sossegar. E as nuvens, almas de névoa, Porque não param, coitadas? É que as asas das gaivotas As trazem desafiadas. Mas as asas das gaivotas O cansaço há-de detê-las! Juraram buscar descanso Nas pupilas das estrelas. E como as estrelas estão altas E não tombam nem se alcançam, As asas das pobrezinhas Baldamente se cansam Baldamente se cansam, Baldamente palpitam! As nuvens, por fatalismo, Logo com elas se agitam; Os impulsos que elas dão Arrastam as ventanias; As vagas arfam nos mares Em macabras fantasias Assim as almas inquietas Prisioneiras de ansiedades, Mal que se erguem da terra, Naufragam nas tempestades!

 

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