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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

O homem na Lua

Coimbra, 20 de Julho de 1969 — O homem desceu na Lua. Ensacado num fato espacial e de foguetão no rabo, tanto teimou que conseguiu pôr os pés fora da Terra. E lá anda aos saltos, a lutar com a imponderabilidade, ridículo mas triunfante. Como é natural, vivi intensamente as diversas fases da viagem, e foi num misto de alívio e orgulho que ouvi a notícia do seu desfecho feliz. Agora, porém, passada a ansiedade e o entusiasmo, sinto-me triste. Que monótonas e desconsoladas aventuras nos restam no mundo! Primeiro, comandadas por computadores; depois, em vez de sonhos de arredondamento da fraternidade, propósitos objectivos de alargamento da solidão...

 

Miguel Torga, Diário

Dai-me rosas e lírios

 

Dai-me rosas e lírios,

Dai-me flores, muitas flores

Quaisquer flores, logo que sejam muitas...

Não, nem sequer muitas flores, falai-me apenas

 

 

Em me dardes muitas flores,

Nem isso... Escutai-me apenas pacientemente quando vos peço

Que me deis flores...

Sejam essas as flores que me deis...

 

 

Ah, a minha tristeza dos barcos que passam no rio,

Sob o céu cheio de sol!

A minha agonia da realidade lúcida!

Desejo de chorar absolutamente como uma criança

 

 

Com a cabeça encostada aos braços cruzados em cima da mesa,

E a vida sentida como uma brisa que me roçasse o pescoço,

Estando eu a chorar naquela posição.

 

 

O homem que apara o lápis à janela do escritório

Chama pela minha atenção com as mãos do seu gesto banal.

Haver lápis e aparar lápis e gente que os apara à janela, é tão estranho!

É tão fantástico que estas coisas sejam reais!

Olho para ele até esquecer o sol e o céu.

E a realidade do mundo faz-me dor de cabeça.

 

 

A flor caída no chão.

A flor murcha (rosa branca amarelecendo)

Caída no chão...

Qual é o sentido da vida?

 

 

 

Fernando Pessoa

 

Rosa

ROSA


Rosa
Rosa em verso, rosa em prosa:
rosa rosa.

Verdadeira, recortada,
sempre votiva é a rosa.
Quem a dá, quem a ostenta,
quem a colhe, quem a inventa,
quem dela - a rosa - se lembra
faz o voto de quebrar
a pessoal solidão.

Se não troco o pão por rosas,
não troco a rosa por pão.

Rosa.
Rosa em verso, rosa em prosa:
rosa rosa.

Rosa nome, rosa coisa,
rosa flor, rosa rosa,
rosa traço de união.

Rosa fugaz, recolhida
noutra rosa já nascida.
De rosa em rosa é a vida.

Ó rosa breve fulgor,
lampejo na escuridão.

Se não troco o pão por rosas,
não troco a rosa por pão.

 

 

Alexandre O'Neil

 

SANTORAL AGRESTE - Rafael Alberti

    

¿Quién rompió las doradas vidrieras
del crepúsculo? ¡Oh cielo descubierto,
de montes, mares, vientos, parameras
y un santoral de par en par abierto!

 

Tres arcángeles van por las praderas
con la Virgen marina al blanco puerto
del pescado; ayunando, entre las fieras,
se disecan los Padres del desierto.

 

El Santo Labrador peina la tierra;
Santa Cecilia pulsa los pinares,
y el perro de San Roque, por el río,

 

corre tras la paloma de la sierra
para glorificarla en los altares
bajo la luz de este soneto mío.

 

 (Rafael Alberti,Cádiz, Espanha 1902-1999, membro da chamada Geração de 27. Foi vencedor, em 1925, do prémio Nacional de Literatura Espanhola pelo seu primeiro livro, Marinero en la Tierra.)

 

Areias de ouro - Armando Silva Carvalho

 

Que estranha visão terá de ti
o rio que passa
e ao qual os poetas inutilmente oferecem
areias de ouro e de Byron?
 
Umas vezes oblíqua aos olhos de quem ama
a liquidez das cúpulas sonoras
onde ondulam as casas
na sua pulsação
nervosa e feminina.
 
Outras vezes erecta e pombalina
talhada para letras
de câmbio
velha receptara
e hoje só senhora
dum tempo fixo e mudo
indiferente à pedra.
 
Mas mais das vezes crespa
nas ondas ruidosas
erguidas da terra ébria
vasto espelho de bar
para novas aventuras.
 
E na boca do fim
 
à beira de um mar de quem não teve infância
só os monumentos
eventos
– ventos da distância.
 
(Nasceu em 1938, Óbidos e foi-lhe atribuído o GRANDE PRÉMIO POESIA DA APE/CTT  pelo seu livro "O Amante Japonês".)


 

Quadras - António Aleixo

O mundo só pode ser   

melhor do que até aqui,

- quando consigas fazer
mais p'los outros que por ti!

 

Para não fazeres ofensas  

e teres dias felizes,

não digas tudo o que pensas,

mas pensa tudo o que dizes.

 

Eu não tenho vistas largas,   

nem grande sabedoria,

mas dão-me as horas amargas

lições de filosofia.

 

Mentiu com habilidade,  

fez quantas mentiras quis;

agora fala verdade

ninguém crê no que ele diz.

 

Não sou esperto nem bruto,  

nem bem nem mal educado:

sou simplesmente o produto

do meio em que fui criado.

 

A quadra tem pouco espaço
Mas eu fico satisfeito
Quando numa quadra faço
Alguma coisa com jeito

 

São parvos, não rias deles,
deixa-os ser, que não são sós;
às vezes rimos daqueles
que valem mais do que nós

 

Julgando um dever cumprir,
Sem descer no meu critério,
- Digo verdades a rir
Aos que me mentem a sério!

 

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