Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Poema III - Alberto de Serpa

 

 

Como tu embriagas!

Vens, ó Poesia!, ou tumultuosa ou mansa,

Cerras o nosso olhar a estes tempos em chagas,

E cantas dentro em nós uma esperança.

És uma irmã que deixa

A fresca mão na nossa testa ardente,

Depois da luta que engrandece a queixa

Que temos sempre contra tanta gente.

És aquela que chega

— Se o tédio em nossas almas se insinua —

Sempre fácil e pronta para a entrega

Mais total e mais nua.

És tu, poesia, quem

— Quando nos prendem boca, mãos e pés —

A coragem raivosa nos mantém,

Ciciando-nos: “Talvez...”

Que bem hajas! Aqui

E em toda a parte, nossos passos guia!

Por cada hora, sejamos mais de ti,

E tu, mais nossa, Poesia!

 

 

 

 

(Alberto de Serpa nasceu no Porto, a 12 de Dezembro de 1906. Foi um poeta português. Frequentou a Faculdade de Direito de Coimbra; foi empregado de comércio e de escritório e tornou-se posteriormente um profissional de seguros; esteve preso por motivos políticos integrou-se no movimento Presença. Faleceu a 8 de Outubro de 1992.)

É tão Suave a Fuga deste Dia

 

 

É tão suave a fuga deste dia,
Lídia, que não parece, que vivemos.
Sem dúvida que os deuses
Nos são gratos esta hora,

Em paga nobre desta fé que temos
Na exilada verdade dos seus corpos
Nos dão o alto prémio
De nos deixarem ser

Convivas lúcidos da sua calma,
Herdeiros um momento do seu jeito
De viver toda a vida
Dentro dum só momento,

Dum só momento, Lídia, em que afastados
Das terrenas angústias recebemos
Olímpicas delícias
Dentro das nossas almas.

E um só momento nos sentimos deuses
Imortais pela calma que vestimos
E a altiva indiferença
Às coisas passageiras

Como quem guarda a c'roa da vitória
Estes fanados louros de um só dia
Guardemos para termos,
No futuro enrugado,

Perene à nossa vista a certa prova
De que um momento os deuses nos amaram
E nos deram uma hora
Não nossa, mas do Olimpo.

Ricardo Reis

Pastor do monte

Pastor do monte, tão longe de mim com as tuas ovelhas 
Que felicidade é essa que pareces ter — a tua ou a minha?  
A paz que sinto quando te vejo, pertence-me, ou pertence-te?  
Não, nem a ti nem a mim, pastor.
Pertence só à felicidade e à paz.
Nem tu a tens, porque não sabes que a tens.
Nem eu a tenho, porque sei que a tenho.
Ela é ela só, e cai sobre nós como o sol,
Que te bate nas costas e te aquece, e tu pensas 
noutra cousa indiferentemente,
E me bate na cara e me ofusca. E eu só penso no sol.

 

Alberto Caeiro

Quando a Erva Crescer

Quando a erva crescer em cima da minha sepultura,
Seja este o sinal para me esquecerem de todo.
A Natureza nunca se recorda, e por isso é bela.
E se tiverem a necessidade doentia de "interpretar" a erva verde
sobre a minha sepultura,
Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural.

 

Alberto Caeiro

Assim como falham as palavras...

Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento,
Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade.

Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada,
Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada.
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos,
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença
.

 

 

Alberto Caeiro, 1-10-1917

MAR

Mar! Mar!
Mar! Mar!

Quem sentiu mar?

Não o mar azul
de caravelas ao largo
e marinheiros valentes

Não o mar de todos os ruídos
de ondas
que estalam na praia

Não o mar salgado
dos pássaros marinhos
de conchas
areias
e algas do mar

Mar!

Raiva-angústia
de revolta contida

Mar!

Silencio-espuma
de lábios sangrados
e dentes partidos

Mar!
do não- repartido
e do sonho afrontado

Mar!
Quem sentiu mar?

 

 

Arménio Vieira - Prémio Camões 2009

( é um jornalista e escritor da língua portuguesa , nasceu na cidade da Praiaem 24 de Janeiro de 1941)

Canção de primavera

 

Eu, dar flor, já não dou. Mas vós, ó flores,
Pois que Maio chegou,
Revesti-o de clâmides de cores!
Que eu, dar, flor, já não dou.

Eu, cantar, já não canto. Mas vós, aves,
Acordai desse azul, calado há tanto,
As infinitas naves!
Que eu, cantar, já não canto.

Eu, invernos e outonos recalcados
Regelaram meu ser neste arrepio...
Aquece tu, ó sol, jardins e prados!
Que eu, é de mim o frio.

Eu, Maio, já não tenho. Mas tu, Maio,
Vem com tua paixão,
Prostrar a terra em cálido desmaio!
Que eu, ter Maio, já não.

Que eu, dar flor, já não dou; cantar, não canto;
Ter sol, não tenho; e amar...
Mas, se não amo,
Como é que, Maio em flor, te chamo tanto,
E não por mim assim te chamo?

 

José Régio

Pág. 2/2