Helga Moreira nasceu em Quadrazais, Guarda, 29 de Abril de 1950 é uma poetisa portuguesa.Publicou o primeiro livro em 1978, em 1996, Os Dias Todos Assim e, em 2002, Desrazões. Colaborou no volume Vozes e Olhares no Feminino (2001). Vive no Porto desde 1968.
É amanhã e, para a comemoração, o TMG pediu a sugestão de um livro importante para mim: obviamente não é só um e podia ter citado vários, mas para não fugir às expectativas referi aquele que me marcou mais e no qual me revi em alguns "dias". Podia ter indicado o primeiro romance que li às escondidas aos doze anos: "Os fidalgos da casa mourisca" de Júlio Dinis; ou então a "Bíblia"; ou os poemas de Fernando Pessoa, Sophia, Eugénio; ou "Os Maias", ou ... sei lá, foram tantos nestes anos todos e ainda bem porque com todos se aprende. O livro é sempre um bom amigo!
Hoje divulgamos as selecções de livros de Honorato Esteves (professor), Osório de Andrade (escritor) e José Monteiro (professor). Estas três personalidades escolheram, respectivamente, "Um dia na vida de Ivan Denisovich" de Alexandre Soljenitsin, "CULTURA Tudo o que é preciso saber" de Dietrich Swarnitz e "A Criação do Mundo” de Miguel Torga. No Café Concerto - trata-se de uma iniciativa no âmbito do Table of Contents, dedicado ao Dia Mundial do Livro - poderá encontrar nos stand up's informativos estas e outras escolhas de livros feitas por diversas personalidades da Guarda. Boas leituras!
Também eu quero abrir-te e semear
Um grão de poesia no teu seio!
Anda tudo a lavrar,
Tudo a enterrar centeio,
E são horas de eu pôr a germinar
A semente dos versos que granjeio.
Na seara madura de amanhã
Sem fronteiras nem dono,
Há de existir a praga da milhã,
A volúpia do sono
Da papoula vermelha e temporã,
E o alegre abandono
De uma cigarra vã.
Mas das asas que agite,
O poema que cante
Será graça e limite
Do pendão que levante
A fé que a tua força ressuscite!
Casou-nos Deus, o mito!
E cada imagem que me vem
É um gomo teu, ou um grito
Que eu apenas repito
Na melodia que o poema tem.
Terra, minha aliada
Na criação!
Seja fecunda a vessada,
Seja à tona do chão,
Nada fecundas, nada,
Que eu não fermente também de inspiração!
E por isso te rasgo de magia
E te lanço nos braços a colheita
Que hás de parir depois...
Poesia desfeita,
Fruto maduro de nós dois.
Terra, minha mulher!
Um amor é o aceno,
Outro a quentura que se quer
Dentro dum corpo nu, moreno!
A charrua das leivas não concebe
Uma bolota que não dê carvalhos;
A minha, planta orvalhos...
Água que a manhã bebe
No pudor dos atalhos.
Terra, minha canção!
Ode de pólo a pólo erguida
Pela beleza que não sabe a pão
Mas ao gosto da vida!
No último sábado, os moços do Telhal Grande receberam a féria com gritos de contentamento. As moedas não tapavam o fundo das algibeiras; mas os projectos transbordavam dos cérebros infantis. No dia seguinte abria a Feira; ia haver esperas de toiros e toiradas, circos e cavalinhos. Por isso, a alegria dos rapazes punha em apuros o mestre, à hora do pagamento.
- Se não se calam, racho um! - vociferou ele, avançando para a porta da barraca.
Fez-se silêncio. Os que estavam mais próximos recuaram, temerosos. Mas logo Gineto gritou de longe:
- O melhor é matar-nos!
- Para quê, pá? Só levava ossos... – comentou Sagui, indicando o corpo enfezado.
- Ou calam-se, ou paro com isto!
Calaram-se. Ficar sem féria seria perder a Feira, e a Feira era a verdadeira festa de despedida dos moços dos telhais. Cinco dias de pândega, entre um Verão de canseiras que findava e um Inverno de miséria que surgia.
O pagamento prosseguiu.
- Malesso!
- Pronto – e agitando na mão o dinheiro recebido, exclamou: - Este é pró fato novo...
- Novo de há dois anos, aldrabão - casquinou Gineto.
- Amanhã é que se vê.
- Sagui! - chamou o mestre.
- Cá estou.
Detrás, um companheiro perguntou:
- Vais comer todos os bolos da Feira co isso?
- Se cá couberem...
Bateu na barriga, e a malta riu. Sagui era pequeno, mas tinha fama de comilão. Só fama...
O mestre continuou:
- Guedelhas!
- Pronto.
O moço saiu cabisbaixo, a contar a féria que os irmãos e o pai, desempregado há dois meses, esperavam.
Os companheiros sabiam disso, e não gracejavam.
- Gineto!
Sem responder, o moço adiantou-se, devagar.
-Tiveste sorte, hem! - disse o mestre com ironia. - Desta vez deitaste fora a temporada.
- Foi por gostar muito de você.
Frente a frente, olharam-se com raiva.
- Malandro... — rugiu o mestre.
- Cão! - ripostou Gineto. E saiu lépido, empurrando os companheiros.
Um destes gargalhou:
- Foge, Gineto.
- Foge o quê, pá? - estacou ameaçador. - Se ele me comer, tem que me largar pelo rabo. Que julgas?
O outro calou-se, amedrontado, e Gineto seguiu caminho, maldizendo o mestre e o telhal.
Quantas vezes, em horas de revolta surda, pensara pagar com juros todas as injúrias do capataz e abandonar depois o trabalho. Já assim fizera em todos os telhais. Com 7 anos, ia o pai levá-lo pelas orelhas até à eira.
- Mestre: tome-me conta deste fidalgo.
Mas, antes de o pai chegar ao portão, atravessava ele o caniço dos esteiros e, mesmo vestido, atirava-se ao rio. A corrente era forte, mas na outra margem havia pássaros, toiros bravos a pastar e valados desconhecidos. À noite, esperava-o a tareia do costume, em vez da ceia, e na manhã seguinte regressava ao telhal pelas orelhas.
Morava no fim da vila, à beira dos esteiros. Da casa que o pai fizera, toda madeira e lata, viam--se os toiros pastar na outra margem e as rotas dos barcos. Havia tufos de junco nos esteiros e lixo abandonado. Mas Gineto sonhava conquistar todas as ruas. Quando pequeno, ainda convertera os esteiros em florestas e rebuscara no lixo brinquedos preciosos. Cedo, porém, se aborreceu daquele recanto monótono, só água e planície. A floresta dava-lhe pela cinta - era junco - e o lixo era lixo, apenas. Começaram então as fugas para a rua. A mãe bem lhe dizia ao fechar a porta: «Toma-me conta do pequeno!» Mas ele deixava o irmão a gatinhar na lama, e ia alvoroçar os garotos seus iguais. Ainda não era o Gineto ladrão. O nome veio-lhe depois com os assaltos aos pomares, florestas mais belas do que os esteiros. Mas já era mau e temido.Amigos tinha-os às vezes nos companheiros que precisavam da sua mão certeira para matar galinhas à solta ou colher frutos em pomares recatados. Fora disso, era mesmo um gineto escorraçado.
Desta vez, porém, foi dominado pela Feira. Queria desforrar-se nos cinco dias festivos, sem os berros do mestre e as pancadas do pai. Iria ver os acrobatas do circo; daria tiros ao canhão e passeios nos cavalinhos. E até havia de estancar o ardor do sangue, dentro das barracas de reposteiros vistosos, onde mulheres pintadas vendiam refrescos e beijos. Seria senhor da Feira e do seu destino; livre, como um homem.
Mas era preciso dinheiro, e então ficara no telhal. E, como um homem, vendeu os braços para que o dinheiro tilintasse agora no bolso das calças. Gineto sentia-se tão feliz que não se lembrou das lágrimas que a mãe havia de chorar por ele e pela féria da semana. Subiu o beco do Mirante a assobiar. As quintas estavam ali em frente a retalhar os vales e a seduzir olhares. O sol, ainda alto, tomava mais branco o branco dos muros e revivescia com reflexos doirados as folhas estioladas das videiras. Mas Gineto não receava a luz da tarde. Tinha a certeza que os caseiros não estariam de atalaia, entre os pomares, porque a melhor fruta já fora apanhada. O moço do telhal sabia de colheitas. Todavia, chegado à estrada, hesitou. Pela primeira vez as suas quintas — suas, como ele dizia — não o atraíram. A Feira afagava-lhe o pensamento; o dinheiro tilintava no bolso... Era livre, sem a perseguição dos caseiros e cães de guarda... Não iria às uvas.
Soeiro Pereira Gomes, Esteiros, Círculo de Leitores (pp. 10-12)
[No seguimento do post anterior e para quem nunca leu, aqui fica um cheirinho da magnífica prosa de Soeiro Pereira Gomes e da sua grande capacidade narrativa.]
Faz hoje 100 anos que nasceu este escritor neo-realista que nos deixou um retrato do Portugal da altura, especialmente através das personagens do seu e nosso "Esteiros". Não há tempo de dizer mais nada mas podem encontrar aqui um bom texto.
Um dia de poemas na lembrança
(Também meus)
Que o passado inspirou.
A natureza inteira a florir
No mais prosaico verso.
Foguetes e folares,
Sinos a repicar,
E a carícia lasciva e paternal
Do sol progenitor
Da primavera.
Ah, quem pudera
Ser de novo
Um dos felizes
Desta aleluia!
Sentir no corpo a ressurreição.
O coração,
Milagre do milagre da energia,
A irradiar saúde e alegria
Em cada pulsação.
"Depois do Inverno, morte figurada, A Primavera, uma assunção de flores. A vida Renascida E celebrada Num festival de pétalas e cores."
Miguel Torga, diário XIV
[A todos os que por aqui passam, para ver, para ler, para partilhar ou por outro motivo qualquer, que as flores, anunciadoras de felicidade e RESSURREIÇÃO, lhes signifiquem o meu apreço e a minha gratidão. Claro que nesta ocasião não podia faltar a mestra voz inimitável a coadjuvar as minhas humildes palavras.]
Tu, mãe de Deus,
Nesta hora e sempre
Mãe d'Ele e nossa mãe,
Pare-o com dor humana
E renovada
E consagrada,
A Ele, que nós buscamos
Com outros e afinal equivalentes credos,
A quem chamamos nos desolados medos,
Talvez com outro nome
Porque é diversa a língua
E não a fome
Que lhe temos.
PIETÁ
Já lívido repousa em seu regaço.
Já não escuta, não vê, não ri, não fala.
Aquele que foi Seu filho, Ela o embala
Morto, alheia a tempo e espaço.
O mistério parou no limiar dos assombros.
Dos irados profetas, das rígidas escrituras
Sobra um Deus morto; e os únicos escombros
São a atónita aflição das criaturas.
Eles choram, vários, como vários são
Sua revolta e sua dor. Absorto,
O olhar da Mãe escorre, inútil, no chão.
Ela, o que chora? O Deus parado - ou o filho morto?