Qualquer tempo é um tempo duvidoso
assim o meu cercado de cidades
plataformas instáveis
praticáveis cobertos de infinita gente náufraga
que se inclina nas águas como um palco
Paro na convergência dos estrados
chove já sobre a raça ameaçada
Incertas multidões em volta passam
contemporâneas falam interpretam
a duvidosa língua das imagens
Assim no teatro abstracto das cidades
morrem palavras sobre um palco náufrago
E já que estou com a mão na massa de citações de blogues, aproveito para recordar estas frases dos nossos (salvo seja) iluminados dirigentes que o Manuel Domingos transcreveu para que fiquem na memória!
Gosto da escrita de Manuel Poppe, não só por estar ligado à Guarda (esse argumento bastaria), mas porque escreve bem e porque diz umas verdades bem actuais. Acompanho as crónicas dominicais do JN e agora o seu blogue. Não resisto a chamar a atenção para o texto que hoje escreveu e que vale a pena ler.
Gosto das
mulheres que envelhecem,
com a pressa das suas rugas, os cabelos
caídos pelos ombros negros do vestido,
o olhar que se perde na tristeza
dos reposteiros. Essas mulheres sentam-se
nos cantos das salas, olham para fora,
para o átrio que não vejo, de onde estou,
embora adivinhe aí a presença de
outras mulheres, sentadas em bancos
de madeira, folheando revistas
baratas. As mulheres que envelhecem
sentem que as olho, que admiro os seus gestos
lentos, que amo o trabalho subterrâneo
do tempo nos seus seios. Por isso esperam
que o dia corra nesta sala sem luz,
evitam sair para a rua, e dizem baixo,
por vezes, essa elegia que só os seus lábios
podem cantar.
É já hoje às 18.00 o seu lançamento no Café Concerto: aconselha-se e recomenda-se. (Infelizmente é pouco provável que lá possa estar, mas quereria muito. Tem de ficar para mais tarde o "manuseamento do objecto".)
Depois do dia mundial da poesia e da Primavera anunciada há muito e antecipadamente, um dia de lembranças invernais no friozinho agreste de oriente. As palavras exaltadas recolheram suavemente aos sótãos da memória e retraíram-se. O sol só levemente trouxe os acres cheiros primaveris a lilás e a tarde harmonizou-se com as sentimentais notas de Neil Diamond (há quanto tempo!) na música do "Fernão Capelo Gaivota". Assim, às doces ternuras das palavras de ontem, juntou-se a terna doçura da música, esse poderoso lenitivo das horas amargas e expansão das alegres. Afinal as amendoeiras já floriram!
A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita
Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará
Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento
A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto
Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento
E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada
Sophia de Mello Breyner Andresen
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco