O fumo é a grafia com que escreve
A mão devaneadora da quimera
No seu estilo curvilíneo, leve,
E vário como um céu de Primavera.
Eu dela (quem melhor a compreendera!)
Entendo só algum dizer mais breve...
Gente há que a compreende e a considera
Clara como o luar em chão de neve:
São os alheados, os que vão sonhando
Ininterruptamente, mesmo quando
Os chicoteia o máximo tormento;
Os que, já sem remédio, ainda esperam;
Os felizes da desgraça —, os que souberam
Pôr tod a a sua fé num sentimento!...
Augusto Gil , Sombra de Fumo
A
AMADEU DE FREITA S
«Muito vence quem se vence,
Muito diz quem não diz tudo,
Porque a um discreto pertence
A tempo fazer-se mudo.»
Copla do Infante D. Luís
Sob este céu criador
De manhã virgiliana,
Apetece ser pastor
E tocar frauta de cana;
Não pastor de autos de amor
De églogas frias e velhas,
Mas verdadeiro pastor
De verdadeiras ovelhas...
Não conhecer o talento
Nem nada do que se ensina.
Esta dor do entendimento
É pior que se imagina...
Guiar o meu coração
Num ingénuo cristianismo.
Esta civilização
É cheia de pessimismo.
Comer pão negro, pão duro,
Beber o leite das piaras.
Pão de centeio é escuro
— Mas põe as almas às claras...
Amar alguma pastora
Com palavras e com obras.
Estas senhoras de agora
São mais falsas de que as cobras...
E ver criar com carinho,
Com cuidados infinitos,
À companheira, um filhinho...
E às ovelhas, borreguitos...
Augusto Gil , Luar de Janeiro
Manhã no campo. O som, a luz, o aroma, a cor,
Fundem-se alegremente em galas festivais.
A luz por todo o espaço, o aroma em cada ílor,
O som na passarada, a cor nos vegetais.
É toda a natureza um êxtase de amor.
Por sob o céu, do tom das rosas outonais,
Concebe o lírio branco, a laranjeira em flor,
A abelha delicada, a pomba dos pombais.
O vento sul dissipa as brumas do nascente,
E como tem chovido a Primavera inteira,
Vai quase a transbordar o leito da ribeira.
O sol envolve o azul num longo beijo ardente
E pelo espaço vão, em fantasiosas linhas,
As boémias de além-mar, as meigas andorinhas.
Augusto Gil, Musa Cérula
Boca talhada em milagrosas linhas,
A luz aumenta com o seu falar.
Esta manhã, um bando de andorinhas
Ia-se embora, atravessava o mar.
Chegou-lhes às alturas, pela aragem,
Um adeus suave que ela lhes dissera,
— E suspenderam todas a viagem,
Julgando que voltara a Primavera...
Augusto Gil , Luar de Janeiro .
As ilusões semelham-se a um colar
De pérolas alvíssimas, de espuma.
Se o fio que as segura se quebrar,
Caem no chão, dispersas, uma a uma.
Caem no chão, dispersas, uma a uma,
Se o fio que as segura se quebrar;
Mas entre tantas sempre fica alguma,
Sempre alguma, suspensa, há-de ficar.
Das minhas ilusões, dos meus afectos,
Longo colar de amores predilectos,
Muitos rolaram já no pó também.
Um só dentre eles não cairá jamais:
Aquele que eu mais prezo entre os demais,
— O teu amor santíssimo de Mãe.
Augusto Gil , Musa Cérula.
No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.
Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.
Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.
Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.
Sophia de Mello Breyner - Obra Poética I
Identidade
Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que ha no sofrimento.
Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Da beleza e sentido a cada grito.
Mas como as inscrições nas penedias
Tem maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.
(Seriam 101 se fosse vivo, mas ele ainda aí está para ser lido e ouvido!)
Ó mar de que não sei nada
Nem vejo que desvendar,
És só a mais larga estrada
Para ir e voltar!
Eu sou lá dos montes
Que medem o céu,
Sou das frias serras onde primeiro o Sol nasceu
E onde os rios ainda são apenas fontes.
Sou de onde as árvores falam
A língua que eu conheço,
Onde de mim sei tudo
E do resto me esqueço.
Lá, tenho olhar de estrelas a luzir
E tenho voz de guardador de rebanhos,
Passos de quem só desce pra subir,
Mãos sem perdas nem ganhos.
Contigo falo, ó mar,
Se a Lua vem do céu passear no mundo,
Tornando-te a planície do luar
Sem ecos nem mistérios de profundo.
Mas só lá sou da terra e a terra é minha,
Só lá eu sou do céu e o céu é para mim,
Ó serra aonde há tal serenidade
Que nada tem começo
Nem fim.
- Branquinho da Fonseca