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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Há dias assim!!!

Dia 14 deste mês fez um ano que comecei este blogue com a intenção de divulgar a poesia de Torga, visto que se celebrava o centenário do seu nascimento. A intenção foi de algum modo conseguida acho eu, pelo menos considero que divulguei alguma da sua poesia que é menos conhecida. Portanto o objectivo do primeiro ano está finalizado. Os últimos dias não me deixaram espaço para agradecer aos visitantes fiéis deste espaço, mas hoje aqui fica o meu sincero obrigado. Agora, não sei como será o futuro. Provavelmente não será tão assídua a minha passagem por aqui e tentarei diversificar o conteúdo, mas como de boas intenções está o inferno cheio é melhor não fazer projectos e esperar o que os dias nos ditem. Da Guarda, das suas gentes, dos seus poetas / escritores, possivelmente falarei; do resto......

Torga

Sísifo

Recomeça....

Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...

Torga

Santo e Senha

Deixem
passar quem vai na sua estrada.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar.
Deixem passar e não lhe digam nada

Deixem, que vai apenas
Beber água de sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.

Vem da terra de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora

Que vai cheio de noite e solidão
Que vai ser uma estrela no chão.

Torga

Prece

Senhor,
deito-me na cama
Coberto de sofrimento;
E a todo o comprimento
Sou sete palmos de lama:
Sete palmos de excremento
Da terra-mãe que me chama.

Senhor, ergo-me do fim
Desta minha condição
Onde era sim, digo não
Onde era não digo sim;
Mas não calo a voz do chão
Que grita dentro de mim.

Senhor, acaba comigo
Antes do dia marcado;
Um golpe bem acertado,
O tiro de um inimigo.....
Qualquer pretexto tirado
Dos sarcasmos que te digo.

Torga

O Espírito

Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:

Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.

Torga

Guerra Civil

É contra mim que luto
Não tenho outro inimigo.
O que penso
O que sinto
O que digo
E o que faço
E que pede castigo
E desespera a lança no meu braço

Absurda aliança
De criança
E de adulto.
O que sou é um insulto
Ao que não sou
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou

Infeliz com loucura e sem loucura,
Peço à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido
Nem convencido
E agrido em mim o homem e o menino.

Identidade

Identidade

Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que ha no sofrimento.

Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Da beleza e sentido a cada grito.

Mas como as inscrições nas penedias
Tem maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.

 

Miguel Torga

Fronteira



De um lado terra, doutro lado terra;
De um lado gente; doutro lado gente;
Lados e filhos desta mesma serra,
O mesmo céu os olha e os consente.

O mesmo beijo aqui; o mesmo beijo além;
Uivos iguais de cão ou de alcateia.
E a mesma lua lírica que vem
Corar meadas de uma velha teia.

Mas uma força que não tem razão,
Que não tem olhos, que não tem sentido,
Passa e reparte o coração
Do mais pequeno tojo adormecido.

 

Miguel Torga

Exortação


Em nome do teu nome,
Que é viril,
E leal,
E limpo, na concisa brevidade
— Homem, lembra-te bem!
Sê viril,
E leal,
E limpo, na concisa condição.
Traz à compreensão
Todos os sentimentos recalcados
De que te sentes dono envergonhado;
Leva, dourado,
O sol da consciência
As íntimas funduras do teu ser,
Onde moram
Esses monstros que temes enfrentar.
Os leões da caverna só devoram
Quem os ouve rugir e se recusa a entrar.

Miguel Torga

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