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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Amigo

Amigo

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra amigo!
Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!
Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.
Amigo é a solidão derrotada!
Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!

 

 

Alexandre O’Neill

Florbela

Fumo
Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são Outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...

                    Florbela Espanca

ALENTEJO

Viana do Alentejo, 18 de Dezembro de 1966.

ALENTEJO

Terra parida,

Num pano repousado,

Por não sei que matrona natureza

De ventre desmedido,

Olho, pasmado,

A tua imensidade.

Um corpo nu, em lume ou regelado,

Que tem o rosto da serenidade.

 

Torga, Diário

Solidão 2

 Anódinos estes domingos outoniços, vestidos de frio e cinza. Arrastam-se lentamente penetrados pelo frio glaciar da meseta e remetem-nos para a solidão intensa que só o aparecimento da Lua faz por momentos abrandar. Prenúncios dos dias invernais que se anunciam, alagados de brisas gélidas da Espanha, convidam a dormitar interiormente entorporando-nos e levando-nos à domingueira nostalgia deprimente. Valha-nos S. Torga para nos lembrar que devemos reagir: mas será que vale a pena? (Não adianta responderem com O POETA, porque até esses versos soam a gasto!) Ouçamos o OUTRO POETA:

Coimbra, 16 de Dezembro de 1963.

PORTUGAL

Avivo no teu rosto o rosto que me deste,

E torno mais real o rosto que te dou.

Mostro aos olhos que não te desfigura

Quem te desfigurou.

Criatura da tua criatura,

Serás sempre o que sou.

E eu sou a liberdade dum perfil

Desenhado no mar.

Ondulo e permaneço.

Cavo, remo, imagino,

E descubro na bruma o meu destino

Que de antemão conheço:

Teimoso aventureiro da ilusão,

Surdo às razões do tempo e da fortuna,

Achar sem nunca achar o que procuro,

Exilado

Na gávea do futuro,

Mais alta ainda do que no passado.

 

Torga, Diário X

SOLIDÃO!

 Coimbra, 15 de Dezembro de 1984.

CLANDESTINIDADE

Horas nocturnas de libertação.

Todos os carcereiros na prisão

Do sono.

Dono

Dos sentimentos,

Do instinto

E da razão,

Sonho,

Penso,

Imagino.

Faço o pino

Deitado.

E às vezes é-me dado

Neste desatino,

Por invisíveis mãos

A que nem sequer posso agradecer,

Um poema obscuro

Que de manhã, à luz do sol, procuro

Claramente entender.

 

Torga, Diário XVI

Quadras

Cantigas de portugueses

São como barcos no mar—

Vão de uma alma para outra

Com riscos de naufragar.

 


Eu tenho um colar de pérolas

Enfiado para te dar:

As per'las são os meus beijos,

O fio é o meu penar.


A terra é sem vida, e nada

Vive mais que o coração...

E envolve-te a terra fria

E a minha saudade não!


Se ontem à tua porta
Mais triste o vento passou -
Olha: levava um suspiro...
Bem sabes quem to mandou...
Fernando Pessoa, Quadras ao gosto popular

O Recreio

O Recreio

Na minha Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar ---
Balouço à beira dum poço,
Bem difícil de montar...

--- E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar...

Se a corda se parte um dia
(E já vai estando esgarçada),
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada...

--- Cá por mim não mudo a corda,
Seria grande estopada...

Se o indez morre, deixá-lo...
Mais vale morrer de bibe
Que de casaca... Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive...

--- Mudar a corda era fácil...
Tal ideia nunca tive...

Mário de Sá-Carneiro

ABSOLVIÇÃO

Coimbra, 10 de Dezembro de 1992.

ABSOLVIÇÃO

Incendeiam-me ainda os beijos que me não deste

E cegam-me os acenos que me não fizeste

Da janela irreal onde o teu vulto

Era uma alucinação dos meus sentidos.

Mas, decorrida a vida, e oculto

Nestes versos doridos,

A saber que não sabes que te amei

E cantei,

E nem mesmo imaginas quem eu sou

E como é solitária e dói a minha humanidade,

Em vez de te acusar

E me culpar,

Maldigo o arbítrio da fatalidade

Que cruelmente nos desencontrou.

 

Torga, Diário XVI

COLUNA

Evora Templo Romano / Roman Temple

Évora, 9 de Dezembro de 1966.

COLUNA

Paralelo ao destino

Inteiro ou mutilado

Doutros irmãos,

O fuste, a prumo, vai da terra ao céu,

Da base ao capitel.

Os dentes do cinzel

E a mão crispada

Deixaram no granito

A imagem figurada

Dum sobranceiro grito

Da condição humana,

Erguido na planície alentejana.

 

Torga, Diário X

Em todas as ruas

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados
que eu ando a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco.
Mário Cesariny