Coimbra, 31 de Dezembro de 1989.
ESPERANÇA
O poema quer nascer das trevas.
Está nas Palavras, e não as sei.
É como um filho que não tem caminho
No ventre da mãe
Dói,
Dói,
Mas a negar-se teimosamente
A todos os acenos libertadores
Do desespero dilacerado.
No silêncio cansado
E paciente
Canta um galo vidente.
E diz que cada dia
Que anuncia
É sempre um dia novo
De renovo
E poesia.
Torga, Diário
BOM ANO DE 2008: QUE SEJA DE POESIA, PAZ E PROSPERIDADE!
S. Martinho de Anta, 30 de Dezembro de 1960.
BORRALHO
Vou aquecendo os sonhos à lareira,
Sem reparar nas cinzas do brasido.
Ou olho-as distraído,
Na baça inconsciência
De que são a verónica da morte.
Sentado na cadeira habitual,
Diligência irreal
Que atravessa, morosa, a noite fria,
De mim próprio alheado,
Dou concreto calor à fantasia
Como se o lume fosse imaginado.
Torga, Diário
Coimbra, 29 de Dezembro de 1971.
INTENÇÃO
Leio-te alguns poemas.
Timidamente, vou abrindo os versos
No silêncio da noite,
Como se confessasse
Culpas imperdoáveis
A um severo juiz
Que nenhum réu ilude.
Tento aquecê-los
E reconhecê-los
Na tua juventude...
Torga, Diário
Monforte do Alentejo, 28 de Dezembro de 1968.
ÊXTASE
Terra, minha medida!
Com que ternura te encontro
Sempre inteira nos sentidos!
Sempre redonda nos olhos,
Sempre segura nos pés,
Sempre a cheirar a fermento!
Terra amada!
Em qualquer sítio e momento,
Enrugada ou descampada,
Nunca te desconheci!
Berço do meu sofrimento,
Cabes em mim, e eu em ti!
Torga, Diário
Música especial:
http://www.youtube.com/watch?v=OpExb2hCYTs&feature=related
Coimbra, 27 de Dezembro de 1977.
SÍSIFO
Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.
Torga, Diário
S. Martinho de Anta, 26 de Dezembro de 1961.
LIÇÃO
A lição que me vem
Da calada e tenaz perseverança
Deste invernoso e austero
Mundo sem folhas, desagasalhado:
Todas as serranias em redor
Aquecidas de fé noutro calor,
Ao borralho do sol, quase apagado!...
Torga, Diário
S. Martinho de Anta, 25 de Dezembro de 1982
NATAL
Solstício de inverno.
Aqui estou novamente a festejá-lo
À fogueira dos meus antepassados
Das cavernas.
Neva-me na lembrança.
E sonho a primavera
Florida nos sentidos.
Consciente da fera
Que nesses tempos idos
Também era,
Imagino um segundo nascimento
Sobrenatural
Da minha humanidade.
Na humildade
Dum presépio ideal,
Emblematizo essa virtualidade.
E chamo-lhe Natal.
Torga, Diário
![Presépio]()
http://leandrohubo.wordpress.com/2006/12/
S. Martinho de Anta, 24 de Dezembro de 1969.
LOA
É nesta mesma lareira,
E aquecido ao mesmo lume,
Que confesso a minha inveja
De mortal
Sem remissão
Por esse dom natural,
Ou divina condição,
De renascer cada ano,
Nu, inocente e humano
Como a fé te imaginou,
Menino Jesus igual
Ao do Natal
Que passou.
Torga, Diário
.
(BOM NATAL PARA TODOS OS FREQUENTADORES DESTE CANTINHO QUE PRETENDE PARTILHAR POESIA, ALGO QUE AINDA VAI SUAVIZANDO ESTE MUNDO LOUCO!)
Mezio, 22 de Dezembro de 1976.
RELANCE
Altas serras felizes
Que o sol doira de luz logo à nascença.
Que o céu olha de cima
Com a ternura extensa
Da eternidade.
Que o vento anima
De movimento
E a neve cobre de um alvacento
Manto de augusta serenidade.
Torga, Diário XII
S. Martinho de Anta, 21 de Dezembro de 1960.
SERÃO
Frios versos de inverno...
Que Musa me regela
O coração? Ah, quem me dera aquela
Ida e primaveril inspiração!
Triste e mortiça,
A minha voz fumega
Como lenha molhada. A fogueira não pega.
Arde assim, apagada.
Torga, Diário IX