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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

TELEGRAMA

Coimbra, 9 de Outubro de 1945.

TELEGRAMA

Camaradas, cá vou sempre a cantar!

Os mesmos versos, mas com mais coragem.

Além de vós, além de mim, é o lar

Onde se aquece o frio da viagem.

Camaradas, prossigo,

Não sei se doido se ressuscitado.

Mas perdido ou liberto, vai comigo

O poema cantado!

 

Torga, Diário III

Frutos

Coimbra, 8 de Outubro de 1945.

COLHEITA

Os frutos vêm agora em pleno dia,

Maduros de certeza e de frescura.

A raiz, toda em húmus de alegria,

Pode mostrar ao céu cor e doçura.

O vento que passar apenas leva

Sementes doutro sonho por abrir.

Inverno que durar concentra e neva

Outros frutos futuros que hao-de vir.

Roxa de mosto, de saúde e rumo,

Na mais alta pernada,

A poesia é o sumo

Desta harmonia plantada!

 

Torga, Diário III

Fingimento?

Coimbra, 7 de Outubro de 1955.

DESARTICULAÇÃO

Brinquedo com enigmas por dentro,

Desmancho-me e concentro

A minha angústia sobre cada peça...

Dão-nos corda, e começa

O movimento;

Mas depois é o tormento

De saber

Se era tudo a valer

Ou fingimento...

 

Torga, Diário VIII

Amália

 

Porque hoje faz oito anos que morreu e porque este é um dos fados que me faz arrepiar quando o ouço e porque foi escrito por um grande poeta do séculoXX. São razões suficientes para recordar:

Amália Rodrigues - Barco Negro
David Mourão-Ferreira



De manhã, que medo que me achasses feia,
acordei tremendo deitada na areia.
Mas logo os teus olhos disseram que não!
E o sol penetrou no meu coração.
Mas logo os teus olhos disseram que não!
E o sol penetrou no meu coração.

Vi depois numa rocha uma cruz
e o teu barco negro dançava na luz...
Vi teu braço acenando entre as velas já soltas...
Dizem as velhas da praia que não voltas.

São loucas, são loucas.


Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir,
pois tudo em meu redor me diz que estás sempre comigo.
Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir,
pois tudo em meu redor me diz que estás sempre comigo.

No vento que lança areia nos vidros,
na água que canta no fogo mortiço,
no calor do leito dos bancos vazios,
dentro do meu peito estás sempre comigo.
no calor do leito dos bancos vazios,
dentro do meu peito estás sempre comigo.

Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir,
pois tudo em meu redor me diz que estás sempre comigo.
Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir,
pois tudo em meu redor me diz que estás sempre comigo.

 

http://www.youtube.com/watch?v=GdJYzzyO7nc

 

AQUI

 

 

Coimbra, 5 de Outubro de 1963.

AQUI

Aqui, neste país e nesta hora.

Aqui, junto dos meus,

Mortos e vivos.

Aqui, de pés atados,

Livre como os balões cativos,

Que pairam, ancorados.

 

Torga, Diário X

NASCIMENTO

Coimbra, 3 de Outubro de 1955.

NASCIMENTO

Nascem os homens como deuses pobres:

Nus e de um ventre que desesperou

De os guardar

Sagrados e secretos no seu lago.

Nascem disformes, sem nenhum afago

Da raiva desabrida que os expulsa

E das mãos aterradas que os recebem.

Bebem

O ar do mundo aos gritos.

Olham sem ver, e são

Surdos e transitórios mitos

Da nossa devoção.

 

Torga, Diário VII

S. Leonardo de Galafura

Ordonho, 2 de Outubro de 1961 — Moeu-me a paciência! Trinta anos, bem medidos, de tenacidade! Cheguei quase a desanimar. Vinha, olhava, tornava a olhar, e nada. Alcandorado no seu trono de penedos e nuvens, com o Douro ajoelhado aos pés e o céu a servir-lhe de resplendor, o santo furtava-se ao retraio poético, de qualquer ângulo que eu apontasse a objectiva. Hoje, porém, de repente, entre duas perdizes, não sei por que carga de água, abriu o rosto e foi ele mesmo que me propôs o instantâneo.

— Mostre lá então as habilidades... — pareceu-me ouvi-lo dizer.

Nem escolhi enquadramento. Antes que se arrependesse, travei a espingarda e disparei a imaginação ao calhar, do sítio onde estava.

Na arte fotográfica propriamente dita, à diástole e à sístole diafragmática segue-se a revelação da película na câmara escura, rematada por alguns retoques amáveis às imperfeições da obra. No meu caso, não houve película, nem câmara escura, nem retoque nenhum. A imagem saiu como está do acto retentivo. Parecida com o original? Muito longe disso. Os poetas não trasladam feições. Já se consideram felizes se conseguem dar do modelo uma sugestão suficientemente aliciante para despertar nos curiosos o desejo de confronto. Assim seja, mais uma vez.

S. LEONARDO DE GALAFURA

À proa dum navio de penedos,

A navegar num doce mar de mosto,

Capitão no seu posto

De comando,

S. Leonardo vai sulcando

As ondas

Da eternidade,

Sem pressa de chegar ao seu destino.

Ancorado e feliz no cais humano,

É num antecipado desengano

Que ruma em direcção ao cais divino.

Lá não terá socalcos

Nem vinhedos

Na menina dos olhos deslumbrados;

Doiros desaguados

Serão charcos de luz

Envelhecida;

Rasos, todos os montes

Deixarão prolongar os horizontes

Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima

Da bem-aventurança.

É lentamente que o rabelo avança

Debaixo dos seus pés de marinheiro.

E cada hora a mais que gasta no caminho

É um sorvo a mais de cheiro

A terra e a rosmaninho!

Torga,  Diário IX

Bruma

 
 S. Martinho de Anta, 1 de Outubro de 1949.

NÃO TENHO CERTEZAS

Não, não tenho certezas.

Se era esse encanto que vos atraía,

Deixai-me só nesta melancolia

De baixo, aberto e liso descampado.

Quero viver, quero morrer, e quero

Que ao fim a soma seja um grande zero

Do tamanho da ardósia... e apagado.

Mas são desejos da fisiologia...

Vagas aspirações do dia-a-dia

Duma bilha de barro

Que não vale o cigarro

Que se fuma.

Não, não tenho certezas;

Tenho bruma.

 

Torga, Diário V

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