Porque hoje faz oito anos que morreu e porque este é um dos fados que me faz arrepiar quando o ouço e porque foi escrito por um grande poeta do séculoXX. São razões suficientes para recordar:
Amália Rodrigues - Barco Negro David Mourão-Ferreira
De manhã, que medo que me achasses feia, acordei tremendo deitada na areia. Mas logo os teus olhos disseram que não! E o sol penetrou no meu coração. Mas logo os teus olhos disseram que não! E o sol penetrou no meu coração.
Vi depois numa rocha uma cruz e o teu barco negro dançava na luz... Vi teu braço acenando entre as velas já soltas... Dizem as velhas da praia que não voltas.
São loucas, são loucas.
Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir, pois tudo em meu redor me diz que estás sempre comigo. Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir, pois tudo em meu redor me diz que estás sempre comigo.
No vento que lança areia nos vidros, na água que canta no fogo mortiço, no calor do leito dos bancos vazios, dentro do meu peito estás sempre comigo. no calor do leito dos bancos vazios, dentro do meu peito estás sempre comigo.
Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir, pois tudo em meu redor me diz que estás sempre comigo. Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir, pois tudo em meu redor me diz que estás sempre comigo.
Ordonho, 2 de Outubro de 1961 — Moeu-me a paciência! Trinta anos, bem medidos, de tenacidade! Cheguei quase a desanimar. Vinha, olhava, tornava a olhar, e nada. Alcandorado no seu trono de penedos e nuvens, com o Douro ajoelhado aos pés e o céu a servir-lhe de resplendor, o santo furtava-se ao retraio poético, de qualquer ângulo que eu apontasse a objectiva. Hoje, porém, de repente, entre duas perdizes, não sei por que carga de água, abriu o rosto e foi ele mesmo que me propôs o instantâneo.
— Mostre lá então as habilidades... — pareceu-me ouvi-lo dizer.
Nem escolhi enquadramento. Antes que se arrependesse, travei a espingarda e disparei a imaginação ao calhar, do sítio onde estava.
Na arte fotográfica propriamente dita, à diástole e à sístole diafragmática segue-se a revelação da película na câmara escura, rematada por alguns retoques amáveis às imperfeições da obra. No meu caso, não houve película, nem câmara escura, nem retoque nenhum. A imagem saiu como está do acto retentivo. Parecida com o original? Muito longe disso. Os poetas não trasladam feições. Já se consideram felizes se conseguem dar do modelo uma sugestão suficientemente aliciante para despertar nos curiosos o desejo de confronto. Assim seja, mais uma vez.