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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Outono

Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa
 

Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa, 
      Substitui o calor. 
P'ra ser feliz tanta coisa é precisa. 
      Este luzir é melhor. 

O que é a vida? O espaço é alguém pra mim. 
      Sonhando sou eu só. 
A luzir, em quem não tem fim 
      E, sem querer, tem dó. 

Extensa, leve, inútil passageira, 
     Ao roçar por mim traz 
Uma ilusão de sonho, em cuja esteira 
     A minha vida jaz. 

Barco indelével pelo espaço da alma, 
     Luz da candeia além 
Da eterna ausência da ansiada calma, 
     Final do inútil bem. 

Que, se quer, e, se veio, se desconhece 
    Que, se for, seria 
O tédio de o haver... E a chuva cresce 
    Na noite agora fria.     

F. Pessoa, Poesias inéditas

Estrela

Vide, 18 de Outubro de 1943.

TROVA

Beira da serra da Estrela

Onde o sol finge de lua...

Soturna e magra courela

Que lã de ovelhas debrua...

 

Torga, Diário III

Chuva

E toda a noite a chuva veio
E toda a noite não parou,
E toda a noite o meu anseio
No som da chuva triste e cheio
Sem repousar se demorou.

 

E toda a noite ouvi o vento
Por sobre a chuva irreal soprar
E toda a noite o pensamento
Não me deixou um só momento
Como uma maldição do ar.

 

E toda a noite não dormida
Ouvi bater meu coração 
Na garganta da minha vida.

 

F. Pessoa, Poesias inéditas

R.I.P.

À lembrança de dois tios que estiveram muitas vezes juntos em vida - porque moravam na mesma aldeia - e que foram a sepultar no mesmo dia: tio Manuel e tia Adélia. Há coincidências estranhas! A vida  é mesmo um  mistério!

 

 

Na mesma pedra se encontram,
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce - uma estrela,
Quando se morre - uma cruz.
Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
"Ponham-me a cruz no princípio...
E a luz da estrela no fim!"

Mário Quintana

 

[http://catedral.weblog.com.pt/arquivo/171917]

Poeta

Coimbra, 14 de Outubro de 1947.

ENIGMA

Que lei rege o poeta, ninguém sabe;

Que arcanjo o vela, também não.

Um poeta não cabe

Na sina que se lê na sua mão.

 

Torga, Diário IV

Tristeza!

Coimbra, 13 de Outubro de 1938.

NEGRURA

Neste dia sem luz que me anoitece,

Que me sepulta inteiro,

Até de mim a minha dor se esquece

Para que eu seja um morto verdadeiro.

Chove tristeza fria no telhado

Do castelo do Sonho; nua, nua

A calçada que subo, já cansado

De tanto andar perdido nesta rua.

Duma olaia caiu, morta, amarela,

Qualquer coisa que foi princípio e fim;

E bem olhada, bem pensada, é ela

Aquela folha que lutou por mim...

Sozinho e morto ouço cantar alguém,

Mas é longe de mais a melodia...

E o ouvido que vai nunca mais vem

Trazer-me a luz que falta no meu dia.

 

Torga, Diário I

HISTÓRIA ANTIGA

Coimbra, 12 de Outubro de 1937.

HISTÓRIA ANTIGA

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.

Feio bicho, de resto:

Uma cara de burro sem cabresto

E duas grandes tranças.

A gente olhava, reparava, e via

Que naquela figura não havia

Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.

Porque um dia,

O malvado,

Só por ter o poder de quem é rei

Por não ter coração,

Sem mais nem menos,

Mandou matar quantos eram pequenos

Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,

Por acaso ou milagre, aconteceu

Que, num burrinho pela areia fora,

Fugiu

Daquelas mãos de sangue um pequenito

Que o vivo sol da vida acarinhou;

E bastou

Esse palmo de sonho

Para encher este mundo de alegria;

Para crescer, ser Deus;

E meter no inferno o tal das tranças,

Só porque ele não gostava de crianças.

 

Torga, Diário I

MOTO CONTÍNUO

Coimbra, 10 de Outubro de 1957.

MOTO CONTÍNUO

Por onde passo sem cantar, já canto

Com a voz que hei-de ter.

O meu silêncio é sempre

O avesso dum verso

Ainda condenado

Ao purgatório do indefinido...

Só quando ali estiver purificado

Poderá ser ouvido.

Ouvido por alheias criaturas.

Eu,

Vítima, algoz e tronco de tortura,

Oiço o trovão

Antes da trovoada...

E arrasto, portanto,

A cruz futura do futuro canto,

Mesmo quando parece muda a caminhada.

 

Torga, Diário VIII