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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Um verso

S. Martinho de Anta, 30 de Outubro de 1955.

TATUAGEM

Um verso apenas, mas que fique impresso

Na morena epiderme

Do teu corpo maciço;

Um verso agradecido

À universal beleza

Do teu rosto redondo,

Infatigavelmente variado;

Um verso branco e puro

De rendido louvor

À serena ironia

Com que deixas brincar no teu regaço

A inquietação,

E devolves o eco

De cada grito

À boca enfurecida,

—Terra, pátria da vida!

Eva que o sol fecunda do infinito!

 

Torga, Diário VIII

IDENTIFICAÇÃO

Coimbra, 28 de Outubro de 1984.

IDENTIFICAÇÃO

E debaixo do chão que me procuro.

Que fundura atingiu cada raiz?

Andei sempre seguro

À terra original

Ou levitei na vida?

O que disse, o que fiz,

Que força umbilical,

Obedecida,

O quis?

Nada que eu tenha sido

Tem sentido

Se ouvi, passiva,

A voz activa

Da condição.

Se, por abstracção,

Me esqueci que sou todo

Feito de lodo

Como Adão.

 

Torga, Diário XIV

F. P.

 

"A maioria pensa com a sensibilidade, eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar ."

F. Pessoa - "Livro do Desassossego"

Constipação

 Constipação

    Tenho uma grande constipação,
    E toda a gente sabe como as grandes constipações 
    Alteram todo o sistema do universo,
    Zangam-nos contra a vida,
    E fazem espirrar até à metafísica.
    Tenho o dia perdido cheio de me assoar.
    Dói-me a cabeça indistintamente.
    Triste condição para um poeta menor!
    Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.
    O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.
 

    Adeus para sempre, rainha das fadas!
    As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.
    Não estarei bem se não me deitar na cama.
    Nunca estive bem senão deitando-me no universo.
 

    Excusez un peu... Que grande constipação física!  
    Preciso de verdade e da aspirina.

Álvaro de Campos

 

Furto do fruto

Coimbra, 24 de Outubro de 1956.

FURTO

Saboreio este dia,

Fruto roubado no pomar do tempo.

Sabe-me a novidade,

Deixa-me os lábios doces.

Tem a polpa de sol, e dentro dele

Calmas sementes doutro sol futuro.

Cheira a terra lavrada e a maresia.

E tão livre e maduro,

Que quando o apanhei já ele caía.

 

Torga, Diário VIII

fénix

A noite adormeceu negra

sem a presença da lua cintilante

mas a madrugada,

para fugir à regra,

apresentou-se mais brilhante

esplendorosa e perfumada.

Recuperou as rosas

rociou os goivos

e com palavras maravilhosas

fez lembrar os noivos

trocando juras amorosas.

As nuvens hão-de aparecer...

Mas a vida acabará por vencer!

 

JM - Julho 2007

Outono

 

 

 

 

 

 

 

Um céu translúcido

mal deixa ver a plenitude lunar

e uma brisa de Outono crescente

incensa de dúvidas o ar

e reaviva um tom plangente,

lembrança da perfeição crepuscular

de um Verão prenhe de sensações

que já se desfez

na palidez

das frias manhãs de Outubro?

Chaga ao rubro

aberta em cada memória

de uma vida fera

a tentar construir a estória...

Mas só a frustração impera.

 

JM (22.10.07)

Domingos de Outono

  

      O Outono anuncia-se paulatinamente. São as manhãs frias cheias de gotículas faiscantes enamoradas dos raios de sol que as vem beijar às primeiras horas da manhã. São as sombras frescas contrastantes com as  tórridas e doentias soalheiras. São as tardes efervescentes de bandos traiçoeiros de mosquitos ávidos das últimas frutas demoradas nas árvores apodrecidas. São as noites a cheirar a lume atractivas pelo conchego das casas e pela brisa fria do norte impiedoso. Tudo começa a cheirar a Outono - apesar do sol teimosamente continuar intenso e doentio - até as tardes de Domingo com esse silêncio nostálgico que nos torna moles e desejosos do sofá  televiso e alienante. A não ser que façamos como o heterónimo de Pessoa:

 

    Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros,

    Contente da minha anonimidade.   
    Domingo serei feliz — eles, eles...  
    Domingo... 
    Hoje é quinta-feira da semana que não tem domingo... 
    Nenhum domingo. — 
    Nunca domingo. — 
    Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem. 
    Assim passa a vida, 
    Sutil para quem sente, 
    Mais ou menos para quem pensa: 
    Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo,  
    Não no nosso domingo, 
    Não no meu domingo, 
    Não no domingo... 
    Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo! 

 

 

Álvaro de Campos

Limoeiro

Coimbra, 20 de Outubro de 1945.

FANTASIA

Canto ou não canto o limoeiro

Aqui ao lado?

Ele é tão delicado!

Tem um jeito tão puro

De se encostar ao muro

Onde vive encostado...

Canto ou não canto as tetas de donzela

Que daqui da janela

Vejo no limoeiro?

Elas são tão maduras...

E tão duras...

Têm uma cor e um cheiro...

Canto!

Nem serei o primeiro,

Nem eu sou nenhum santo!

 

Torga, Diário III

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