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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Angústia de poeta

Coimbra, 21 de Agosto de 1982.

PÂNICO

Nestas horas sem versos,

É o silêncio da morte que adivinho.

Um silêncio maninho

Que entorpece os sentidos.

A vida

Anoitecida

Na lembrança,

Com todos os pecados cometidos

Já sem peso no prato da balança.

Assim são condenados os poetas

À visão do seu nada,

Quando as musas cruéis os emudecem.

Quando parecem

Múmias a apodrecer.

Quando em vão querem ter

A voz passada.

A voz insone que os fazia ser

Os arautos da eterna madrugada.

 

Torga, Diário XIV

Buarcos . pinheiro

Muralha do Forte
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Buarcos, 20 de Agosto de 1937.

SOMBRA

Um pinheiro.

Olho esta vida aqui no areal,

Serena, ao vento, ao sol e ao cheiro

Deste mar animal;

Meço-lhe o pé seguro,

A largura dos braços e a certeza

Que tem de cima a baixo de ser duro

Conforme lhe mandou a natureza;

E deito-me à sombra dele, no chão,

— No mesmo chão onde eu não pude ser

Nada mais do que um bicho anão

A gemer.

 

Torga, Diário I

ESPERANÇA

Miramar, 19 de Agosto de 1967.

ESPERANÇA

Quero que sejas

A última palavra

Da minha boca.

A mortalha de sol

Que me cubra e resuma.

Mas como à despedida só há bruma

No entendimento,

E o próprio alento

Atraiçoa a vontade,

Grito agora o teu nome aos quatro ventos.

Juro-te, enquanto posso, lealdade

Por toda a vida e em todos os momentos.

 

Torga, Diário X

MIRAGEM

Miramar, 18 de Agosto de 1964.

MIRAGEM

Passa um navio ao largo dos meus olhos.

(Os meus olhos, agora, são azuis,

Imensos e navegáveis...)

Passa moroso, como um desejo

Insatisfeito.

Passa, e morre desfeito

Em bruma de ilusão

Na curva do horizonte cruciante

Que cerca a solidão

De quem sonha, tolhido, um cais distante...

 

Torga, Diário X

Coração aflito

Miramar, 17 de Agosto de 1966.

ENCONTRO

O desespero tem agora a imagem

Do seu tamanho:

O mar sem fim, que o areal debrua.

Milhas e milhas de tristeza nua,

Que nenhum sonho veste.

A rasa imensidão

Dum coração

Que pulsa aflito sob a paz celeste.

 

Torga, Diário X

Alma inquieta

Coimbra, 16 de Agosto de 1980.

ENCOMENDAÇÃO

Alma penada

Condenada

À vida,

Não paro de viver.

Sempre a acender

A luz interrompida,

Perturbo o sono de quem dorme ao lado,

Dia e noite acordado

E ofegante,

Lavro como um arado

Obstinado

Os pousios do tempo circunstante.

E, fora de sazão

E de razão,

Sem ouvir os gemidos

Dos sentidos,

Semeio e reverdeço a terra desolada

Da minha solidão.

Canto com emoção

Desencantada

Versos serôdios que a geada cresta.

Versos sem voz futura,

Mas que são, nesta hora de amargura,

A única certeza que me resta.

 

Torga, Diário XIII

 

 

SOLIDÃO

Coimbra, 15 de Agosto de 1941.

DÚVIDA

Anoiteceu.

Aqui sentado, pensava

Na minha vida;

Nesta tristeza arrastada

Que ninguém quer alegrar;

Nesta fogueira cercada

Duma invernia polar.

E a mim mesmo perguntava

Se dessa vida ficava

Pelo menos uma baba

Igual à do caracol.

Uma excreção que brilhasse

Quando nela reparasse

A luz do sol...

 

Torga, Diário I

Deusa

Albufeira, 14 de Agosto de 1976.

TRANSFIGURAÇÃO

O sol e o mar deram à tua pele

O tom do bronze, a cor da eternidade.

E agora, nos meus olhos de poeta,

Es uma deusa eterna a passear

Na praia iluminada.

Imaginada

Num poema despido,

Desafias o tempo, olímpica e sagrada,

Humana só na sombra de o teres sido.

 

Torga, Diário XII

Ascensão

Gerês, 13 de Agosto de 1962.

ASCENSÃO

À brisa irrequieta que pergunta:

— São namorados?,

Responde o céu sereno:

— É o pai e a filha;

Ele quer mostrar-lhe a cúpula do mundo,

Ela pasmar da nova maravilha...

E o sol que brilha

Lá na sua altura,

Cora de ver chegar junto de si

Os heróis da sonâmbula aventura...

— Posso ir brincar ali?

— Podes, amor, que a nuvem está segura.

 

Torga, Diário IX

100 anos

Hoje, precisamente há cem anos nascia um dos maiores HOMENS que Portugal teve a honra de ter como filho no século XX. Apesar dos silêncios oficiais - não dá parangonas como as inaugurações de auto-estradas - o país foi revivendo e relembrando esta alma inquieta que soube dar voz às nossas interrogações existenciais e nos vai memorando a condição humana de misérias umas vezes, mas também de esplendores e grandezas que felizmente dominam as primeiras. Hoje a minha homenagem passa por três registos diarísticos: o primeiro, por isso mesmo, o segundo, por associar a data à figura tutelar da mãe e o terceiro por recordar a existência como ele a viveu / vivia.

 

Termas de S. Vicente, 12 de Agosto de 1938 — Estas romarias de Portugal! E eu que faço hoje trinta e um anos! Porque no fundo tenho passado a vida a arranjar coragem para me atirar a um baile destes e suar duma vez o lirismo que me envenena. Mas completo hoje trinta e um anos. Agora, só mesmo fazendo um filho depressa e delegando nele.

Gerês, 12 de Agosto de 1948.

ANIVERSÁRIO

Mãe:

Que visita tão pura me fizeste

Neste dia!

Era a tua memória que sorria

Sobre o meu berço.

Nu e pequeno como me deixaste,

Ia chorar de medo e de abandono.

Então vieste, e outra vez cantaste,

Até que veio o sono.

 

Coimbra, 12 de Agosto de 1991 — Os oitenta e quatro anos ensinaram-me que é mais fácil concitar ódios do que motivar e conservar amizades. Mas não desisto de dar voz ao coração, mesmo a correr o risco de ser mal compreendido por aqueles com quem só de coração aberto sei comungar.

Amigos:

Todos sabemos, clara ou brumosamente, que nascemos sós, vivemos sós e morremos sós. E que, até nas horas menos infelizes,  no mais fundo do nosso inconsciente, lateja, cruciante, a dor incurável dessa condenação. Mas sabemos também que a Bíblia, o livro dos livros, nos ensina que não há homem sem homem, e que o próprio Cristo teve, a caminho do Calvário, a fortuna dum cireneu para o aliviar do peso da cruz. O que, trocado por miúdos, significa que a solidão radical de cada existência — que, nos poetas, a cegueira de Homero ilustra premonitória e paradigmaticamente —, é mitigada por uma força que, se não vence o destino, inconformadamente desde sempre o desafia. (...)