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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Pátria

 

A bordo, 31 de Agosto de 1953.

PERSEGUIÇÃO

Noite pátria que cresces nos meus olhos,

E não és ama, nem mulher, nem musa:

Toda a minha vontade te recusa,

Com todos os sentidos te renego.

Bruxa de luto por nenhum poeta,

Mesmo aqui o teu vulto me inquieta:

Vou num berço de espuma, e não sossego!

 

Torga, Diário VII

Repuxo

Gerês, 30 de Agosto de 1942.

PARÁBOLA

No silêncio do parque abandonado

O repuxo prossegue a sua luta;

É um desejar alado

A sair duma gruta.

Ergue-se a pino ao céu como uma lança;

Ergue-se a pino, e sobe na ilusão;

Até que a flor do ímpeto se cansa

E cai morta no chão.

Mas a raiz do Sonho não desiste;

Subir, subir ao céu, alto e fechado!

E o repuxo persiste

Na solidão do parque abandonado.

 

Torga, Diário II

...

Coimbra, 29 de Agosto de 1944.

SUDÁRIO

O dia rompe da noite

Como um rebento do fruto.

Ri-se um melro de alegria,

Acorda o céu do seu luto.

Era preciso cantar,

Mas um hino absoluto.

E quem o canta, quem é

Capaz de uma tal façanha?

A poesia morreu

De desespero e de manha.

 

Torga, Diário III

Há dias assim!!!

Espinho, 28 de Agosto de 1945.

EXORTAÇÃO AO SONO

Noite, que tens o dia à tua beira,

Discreto como um anjo velador:

Dorme e não sonhes, aligeira

A negra duração da tua dor.

Nenhum sol se detém no seu caminho,

Mas todo o Deus regressa.

Noite, bebe o teu vinho

Antes que o anjo se despeça!

 

Torga, Diário III

Reno e chuva

Colónia, 27 de Agosto de 1970.

RENO

Doiro feliz da Europa

Turvado de carvão e de poesia,

A correr sem cachões

Num lírico cenário sem mortórios,

A que mar de harmonia

Levas as pulsações

De tantos corações

Contraditórios?

 

Torga, Diário XI

(Para vermos que não é só neste Verão que chove e como a chuva se transforma em reflexão!)

Gerês, 27 de Agosto de 1942 — São cinco horas da manhã, mas não posso dormir. Choveu muito estes três dias, e um pobre ribeiro turístico que passa debaixo da janela do meu quarto canta pelas fragas fora que é um regalo ouvi-lo. Além disso estou numa daquelas noites de consciência universal — à minha escala, claro está — em que tudo me bate à porta e pede compreensão e amor. No repouso do leito, o mundo como que deixa de ter o seu cheiro fétido, e a vida chega à nossa razão, calma, clara, perene e grande. Coisas triviais erguem-se da sua mesquinhez, e é na morna quentura dos lençóis que, por exemplo, nos sabe inteiramente um largo passeio dado há cinco ou vinte anos, na companhia querida de alguém, ou na doce solidão dum desespero. O silêncio da noite clarifica pormenores que chega a parecer milagre que tivessem tanta pureza. O que eu vejo agora de quanto cuidei ver pelo dia adiante!

Torga, Diário II

Gerês

Gerês, 26 de Agosto de 1942.

ÁGUA

Água a correr na fonte.

Uma quimera líquida que sai

Das entranhas do monte

A saber ao mistério que lá vai...

Pura,

Branca, inodora e fria,

Cai numa pedra dura

E desfaz o mistério em melodia...

.

Gerês, 26 de Agosto de 1942.

CONDENAÇÃO

Toda a manhã o lírico pagão,

O animal sensível que em mim olha,

Olhou, olhou, cheio de comoção,

Uma folha.

Era de tília a mágica verdura.

Larga, quieta, ao sol, vivia.

E a viver assim dava frescura

A quem da terra seca lha pedia.

Nisto, não sei que maldição soprou,

Ou que Deus demoníaco sorriu,

Que toda aquela calma se agitou

E caiu.

 

Torga, Diário II

O tempo

S. Martinho de Anta, 25 de Agosto de 1979.

ECO

Desatei o nó cego do silêncio

E ouvi a minha voz.

Tão velha, tão cansada!

Como pode ser ela, assim desfigurada,

A que um dia se ergueu num desafio

E cantou a revolta,

A liberdade

E o amor?!

Grande senhor

Fantasioso,

O tempo dá e tira.

Afina

E desafina

A lira

Dos poetas.

E quando se aproxima

A barca de Caronte,

Num último capricho de os negar,

Reduz a fonte

À sede de a lembrar.

 

Torga, Diário XIII

S. Martinho de Anta

http://www.glosk.com/PO/

 

S. Martinho de Anta, 24 de Agosto de 1965 — Demorado exame de consciência no altar dos meus penates. Despi-me de todas as presunções alfabetas, e humildemente, na singela nudez dum filho pródigo, prestei-lhes contas da minha aventura humana, tão oposta à deles. Com o ouvido atento dos mortos, escutaram gravemente a meditação silenciosa da longa viagem que vai do rapazinho nado e criado nesta simplicidade rural ao homem complicado que sou, carregado de problemas e angústias. Recordei a voz ardilosa que me chamou, a força oculta que me impeliu, os escolhos que encontrei, as vezes que sucumbi, e justifiquei como pude a fé perdida, a visão laica da realidade, a esperança desencantada, a rebeldia teimosa, e o suor da rabiça trocado pelo da caneta.

  Mudos durante a maceração, mudos ficaram quando cheguei ao fim. Nem me louvavam, nem me censuravam. Fechavam-se numa prudente reserva. Galerianos das leivas e dos caminhos, a seguir as juntas e as recuas, atados de pés e mãos a um destino sem outra esperança que não fosse a do céu, como poderiam eles visionar qualquer desvio no destino da prole? E eu iniciara essa façanha. Que significava ela? Não sabiam ao certo. Por isso abstinham-se de qualquer juízo.

  Mas o sangue é o sangue. Tem singulares maneiras de falar e ouvir, quando corre em veias familiares. No auge do desespero, segredou-me que havia uma solidariedade subentendida entre os beneficiários do mesmo património somático. Negando-se a condenar, os lares taciturnos implicitamente aplaudiam. Davam-me, sem palavras, carta branca. E essa certeza bastou para que me levantasse do confessionário aliviado e confiante. Tornara-se viva no meu entendimento a certeza de que eles próprios não queriam que eu desistisse, que eu desanimasse, que eu fosse um elo de fraqueza na linha vital do clã, porque talvez as minhas heresias significassem o começo da sua póstuma redenção. O resgate de séculos de sofrimento e humilhações.

Torga, Diário X

 

O lado amargo

Caldelas, 23 de Agosto de 1952.

NÁUSEA

Que funérea tristeza,

Cemitério do tempo!

Hidrângeas de gangrena

E sombra humedecida...

Fetos,

Dejectos,

E um túnel de silêncio — o mausoléu da vida.

Heras das eras, sanguessugas lentas,

Deitadas sobre a seiva vertical.

E folhas de anemia, sonolentas,

Transparências doentes de vitral.

Negativa pujança. Eterno outono.

Colorida e soturna podridão.

Parque das Parcas. Abandono

Das formas à total degradação.

 

Torga, Diário VI

OCEANO

Espuma

S. Pedro de Muel, 22 de Agosto de 1985.

OCEANO

Poema sem sossego e sem remate,

Harpejo horizontal do coração do mundo,

Há quantos anos já que te recito

Obsessivamente,

A medir cada verso

Em cada onda!

E nunca te entendi!

És um mistério cósmico e sagrado.

Um mistério que logo pressenti

Quando pela primeira vez te vi,

Maravilhado,

A marginar um

Portugal sonhado,

Tão perto e tão distante,

Sempre no mesmo instante

Morto e ressuscitado.

 

Torga, Diário XIV

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