Coimbra, 23 de Julho de 1985— Explicar Portugal! As vezes que o tenho tentado para governo próprio e alheio! Mas dou sempre com a verruma em prego. O que digo ou escrevo nunca me satisfaz, mesmo quando os outros se dão por esclarecidos. Parecendo que não, é misteriosa esta realidade pátria. Pequenez territorial infinitamente diversificada, palco de uma História que excede as crónicas, berço de um povo de impenitentes vagamundos, toda a descrição a diminui e nenhuma síntese a resume. Cabe nos mapas mas não cabe nas palavras. Vocação nacional acordada na bruma dos tempos, a mais ou das mais antigas da Europa, apetece nimbá-la de um halo de predestinação, olhá-la como o desígnio de uma suprema vontade. E, ao fim e ao cabo, é na singela simplicidade de uma génese natural que talvez consista o singular fascínio da sua existência multissecular. O bom não é nascer feito, é fazer-se. E Portugal fez-se. Como, é que causa engulhes. A assumir-se, a pelejar, a empreender, a perseverar. E a verdade é que tem um rosto inconfundível. O rosto da liberdade contra todos e contra tudo, quanto mais em perigo mais confiado. É esse rosto, ao mesmo tempo flagrante e enigmático, convivente e arisco, que me intriga e desafia. Mas acabo sempre por entendê-lo melhor com o coração do que com a razão. Ou não fosse o amor o mais englobante dos nossos dons.
Porque ontem o céu ficou pardacento, lento e a anunciar tempestade, a vontade de postar dobrou-se à angústia do ser: as minhas desculpas a Torga e aos possíveis leitores. Hoje ficam dois registos díspares em intenções, mas próximos em mito.
Serra da Estrela, Poço do Inferno, 22 de Julho de 1951.