Vilarinho de Samarda, 26 de Maio de 1955 — Os homens célebres parecem deixar o fantasma da sua morte nos sítios por onde passaram. A espécie de terror sagrado que paira nesses lugares dá-me a impressão de ser a imagem inquietadora e apenas disfarçada da hera letal colada a todas as vidas, que os não acompanhou no aniquilamento. Cada um de nós, chegada a hora, leva consigo para a sepultura o espectro da própria destruição. O esquife conduz tudo: a chama apagada e as cinzas da fogueira. Mas neles o sim e o não que coexistem no indivíduo, depois do lance fatal, separam-se. O sim parte, e o não fica. É como se a Parca, invejosa da glória intemporal que os perpetua no mundo, permanecesse ali vigilante, à espera de se vingar do próprio fracasso.
À falta de registos poéticos no Diário de Torga, fica um poema meu em sua honra. Claro que não chega aos calcanhares do poeta, nem sequer se aproxima, mas é parte de mim e, neste ano de centenário, converte-se em singela homenagem.
Aveiro, 24 de Maio de 1958 — Gosto desta terra. Não por se parecer com outras lá de fora, com que se não parece, aliás, mas por ser a realidade portuguesa que é — uma originalíssima expressão urbana e humana, ao mesmo tempo firme e movediça dentro do corpo da pátria, cais de embarque e terreiro de discussão, doce e salgada no sabor, e perpetuamente arejada por uma fresca brisa de maresia e revolta. Entra-se nela, e respira-se doutra maneira. O peito oprimido enche-se dum oxigénio imprevisto e generoso, ainda nativo, e já com todo o iodo tónico do largo. O iodo tónico da liberdade...