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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Bucólica

    Poema bastante belo porque simples; além do mais fala da Natureza que é sempre bela, mesmo quando não parece ou está furiosa com o que nós humanos lhe fazemos.  Também ficou harmónico quando o Chico Fininho o cantou - o canta.

S. Martinho de Anta, 30 de Abril de 1937.

BUCÓLICA

A vida é feita de nadas:

De grandes serras paradas

À espera de movimento;

De searas onduladas

Pelo vento;

De casas de moradia

Caídas e com sinais

De ninhos que outrora havia

Nos beirais;

De poeira;

De sombra de uma figueira;

De ver esta maravilha:

Meu Pai a erguer uma videira

Como uma mãe que faz a trança à filha.

Diário I

Telurismo 2

S. Martinho de Anta, 29 de Abril de 1990.

CONFRONTO

Serras da minha infância

E da minha velhice.

Então, porque as passeava

Alado como o vento

Que nelas me enfunava

O corpo e o pensamento.

Agora, porque as namoro

Alcandoradas

Na eminência sagrada

Dum altar

Onde nenhuma fé cansada

Pode chegar.

Serras dos meus poemas

Malogrados.

Sonhados

Da mesma altura

Nos dias abrasados

Da inspiração,

Arrefecidos, são

Ecos rasteiros de uma voz erguida.

Balbucies de candura

Na memória dorida

Que, teimosa, os murmura.

Diário XVI

Entardecer

Coimbra, 28 de Abril de 1984.

VESPERAL

E, contudo, é bonito

O entardecer.

A luz poente cai do céu vazio

Sobre o tecto macio

Da ramagem

E fica derramada em cada folha.

Imóvel, a paisagem

Parece adormecida

Nos olhos de quem olha.

A brisa leva o tempo

Sem destino.

E o rumor citadino

Ondula nos ouvidos

Distraídos

Dos que vão pelas ruas caminhando

Devagar

E como que sonhando,

Sem sonhar...

Diário XIV

Rescaldo

Coimbra, 27 de Abril de 1961 - Há trinta e cinco anos (desde que, praticamente, comecei a ser gente) que vivo vigiado, como, de resto, todos aqui. E há trinta e cinco anos que olho com o mesmo consternado espanto os sujeitos que me vigiam Nos tempos da Inquisição, ainda se poderia aceitar — com dificuldade, mas enfim... - que o fanatismo da fé levasse certos homens a comportamentos desumanos, embora Deus lhes não encomendasse o sermão Mas agora nenhuma cega força interior motiva semelhante deformação. Um polícia secreto de hoje procede à margem de qualquer impulso sectário. Actua simplesmente por ofício. E é isso que me penaliza e assombra: que a intolerância possa constituir um modo de vida.

Diário IX

Negrilho

S. Martinho de Anta, 26 de Abril de 1954.

A UM NEGRILHO

Na terra onde nasci há um só poeta.

Os meus versos são folhas dos seus ramos.

Quando chego de longe e conversamos,

É ele que me revela o mundo visitado.

Desce a noite do céu, ergue-se a madrugada,

E a luz do sol aceso ou apagado

É nos seus olhos que se vê pousada.

Esse poeta és tu, mestre da inquietação

Serena!

Tu, imortal avena

Que harmonizas o vento e adormeces o imenso

Redil de estrelas ao luar maninho.

Tu, gigante a sonhar, bosque suspenso

Onde os pássaros e o tempo fazem ninho!

Diário VII

liberdade

    Como os ícones humanos são passageiros e facilmente esquecidos injustamente! A grandeza de vida e exemplo de um Zeca Afonso e a televisão portuguesa vai buscar para o homenagear um programa da homóloga Galega! O que se fará hoje?! As audiências devem diparar durante o telelixo normal dos feriados, mas se houver algum programa sério de homenagem ele passará despercebido. Novamente as palavras de Torga dizem tudo ou quase tudo, mesmo que entre elas esteja a distância temporal de 17 anos. Os factos da nossa pseudo-democracia gritam à saciedade por si mesmos!

 

 

 

 

Coimbra, 25 de Abril de 1974 - Golpe militar. Assim eu acreditasse nos militares. Foram eles que, durante os últimos macerados cinquenta anos pátrios, nos prenderam, nos censuraram, nos apreenderam e asseguraram com as baionetas o poder a tirania. Quem poderá esquecê-lo? Mas pronto: de qualquer maneira, é um passo. Oxalá não seja duradoiramente de parada...

Coimbra, 25 de Abril de 1991 — A eloquência doméstica no seu esplendor anual, a sujar de retórica uma data que muitos e em muitos e largos anos de sofrimento sonharam limpa. Mas a realidade é sempre cruel. E o natural é que os nossos representantes oficiais nos representem. Que amesquinhem a nossa pequenez a engrandecê-la com frases ocas, como nós a apoucamos elegendo-os, e nos exaltem a liberdade que devemos à generosidade de heróis que tivemos de combater logo no dia seguinte ao da generosidade.

Rododendros

Loendros em flôr .

Reserva Botânica de Cambarinho

Combarinhos, Caramulo, 24 de Abril de 1983 - Nova visita à reserva de rododendros espontâneos que se esconde nestes confins do mundo. A natureza às vezes gosta de se enfeitar assim secreta e caprichosamente, numa garridice gratuita, sem testemunhas, já que os aborígenes nem reparam na louçania. E têm de ser os olhos indiscretos dos poetas a vir de longe surpreender a maravilha e a dar notícia dela, pois só eles são capazes de admirar e compreender o absurdo de milhares de delicadas corolas abertas na aspereza de um meio onde a sua graça diz mas não condiz.

Diário XIV

Despedida

S Martinho de Anta, 23 de Abril de 1984 - Despeço-me melancolicamente do jardim. Cá o deixo em festa, na sua cíclica Primavera multicor. Só o melro, que aguarda insofrido a minha partida para começar a fazer o ninho no noveleiro do pátio, fica agora a gozar, como dono privativo, este resguardado esplendor. E com todo o direito. Flores gratuitas para uns olhos gratuitos. Rosas e azáleas que nenhuma angústia veja nascer e nenhuma memória recorde.

Diário XIV

Amor? Perdido!!!!

Coimbra, 22 de Abril de 1955.

POEMA MELANCÓLICO

A NÃO SEI QUE MULHER

Dei-te os dias, as horas e os minutos

Destes anos de vida que passaram;

Nos meus versos ficaram

Imagens que são máscaras anónimas

Do teu rosto proibido;

A fome insatisfeita que senti

Era de ti,

Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,

Conto as desilusões no rol do coração,

Recordo o pesadelo dos desejos,

Olho o deserto humano desolado,

E pergunto porquê, por que razão

Nas dunas do teu peito o vento passa

Sem tropeçar na graça

Do mais leve sinal da minha mão...

Diário VII

...

Coimbra, 21 de Abril de 1949.

VAGABUNDAGEM

Já me servia ser

Marinheiro num rio.

Pilotar um navio

De trazer lenha de Penacova...

Ter uma vela

Nesta aguarela

Que se renova.

Diário V

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