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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Depoimento

 

De seguro,

Posso apenas dizer que havia um muro

E que foi contra ele que arremeti

A vida inteira.

Não. Nunca o contornei.

Nunca tentei

Ultrapassá-lo de qualquer maneira.

 

A honra era lutar

Sem esperança de vencer.

E lutei ferozmente noite e dia,

Apesar de saber

Que quanto mais lutava mais perdia

E mais funda sentia

A dor de me perder.

Diário XIII

Torga

Coimbra, 17 de Fevereiro de 1958 - Sim, esforço-me por escrever bem. Inimigo figadal do esteticismo vazio e do purismo caturra, tento, contudo, ser correcto no que digo, e dizer da melhor maneira. Nem chego a compreender os sibilinos alfabetos que me censuram um propósito tão elementar. Se na vida profissional procurei sempre ser honesto e capaz, porque não hei-de fazer o mesmo como escritor? Ora um escritor honesto e capaz deve escrever bem. Por isso, pego na pena com o escrúpulo com que pego no bisturi. O canhestro manuseamento deste pode matar o doente; a ma utilização daquela pode perverter o gosto e torcer a consciência do leitor. Ambos, portanto, exigem igual precisão e honradez. Não é uma boa prosa que ambiciono, mas sim uma claridade gráfica. Gostaria de restituir às palavras a alma que lhes roubaram, e que a língua tivesse nas minhas mãos, além da graça possível, uma dignidade insofismável. Que não agredisse a sensibilidade alheia e me testemunhasse e responsabilizasse. Que cada frase, em vez dum habilidoso disfarce, fosse uma sedução e um acto. Uma sedução sem condescendências, e um acto sem subterfúgios. Para tanto, limpo-a escrupulosamente de todas as impurezas e ambiguidades, na porfiada esperança de que a sua claridade se veja e se entenda ao mesmo tempo. E a vejam e a entendam, sobretudo, os que não são profissionais da literatura. De onde resulta que, muito mais do que o juízo da crítica encartada, me interesse principalmente a opinião do leitor comum e da polícia. Ele, na sua desprevenida entrega a uma solicitação atraente e leal, e ela, na sua profissional desconfiança da verdade, é que me dizem se vou por bom caminho, ou não. Uma obra desapaixonadamente lida e estimada, e repressivamente apreendida, dá muitas garantias de ter ao mesmo tempo encanto e autenticidade. E só esse encanto e autenticidade, em meu entender, valem a pena - e as penas - que custam.

Diário, VIII

Tempestade

Ao princípio da tarde senti-me na pele dos gauleses: com medo que me caísse o céu na cabeça. Também se fosse gaulês seria um Astérix sem qualquer poção mágica para me defender. Quão frágeis somos perante a imensa força da Natureza!

O desconsolo do poeta Torga é de outra ordem:

Coimbra, 16 de Fevereiro de 1979 - Uma semana a lutar dia e noite com um poema. Consegui há pouco, finalmente, dar-lhe o remate. E foi um desconsolo quando o vi já sem precisar do meu esforço. (Diário XIII)

Palavras para quê? Um poema é como um filho que se emancipa e segue o seu caminho.

Torga

CERTEZA

Não:

Nunca saberás quem sou.

Apesar destes beijos que te dou

E destas ironias que te digo,

Vou contigo

Como vou

Ao lado dum inimigo.

(Coimbra, 6 de Novembro de 1936)

Diário I

Ar da Guarda

Ar da Guarda porque é forte, porque é farto, porque é fiel, porque é formoso e porque é frio. Porque é a coisa mais pura que cá temos. Porque é saudável! Porque é bom respirá-lo o que é sinal de estarmos vivos. Porque a Guarda é uma cidade de uma formosura feia. Porque a Guarda, guarda!

E sobre a nossa cidade Miguel Torga disse:

Guarda, 25 de Fevereiro de 1945Cá ando a dar a volta à Estrela, como uma borboleta a circundar uma luz. Pelo caminho vou olhando também a sepultura do Sortelha, em Góis, o berço de Pêro da Covilhã, na dita, o lar de Pedro Álvares Cabral, em Belmonte, e a feitura forte e fria desta Guarda do passado. O circuito não finda aqui, claramente, mas é sempre aqui que eu me demoro mais, numa meditação que não tem fim. É uma introspecção do granito, uma coisa absurda e dura, que não sei clarificar. Entra nela a Sé gótica e pesada, contrafeita, a tentar subir ao céu numa ogiva, e a sentir toscos e serranos tamancos nos pés calosos, que não podem com tanta altura. A Idade Média a convidar tardiamente as fragas beiroas a um êxtase universal, e elas, atarracadas e maciças, com medo de uma tal aventura. Enfim, coisas minhas, que dão à própria pedra uma alma, uma fala, uma intenção, um destino –e fazem com que eu não conceba de mármore um canastro de guardar milhão.” Diário, III

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